segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A SOBERANIA DO POVO É SATÂNICA

MARCEL DE LA BIGNE DE VILLENEUVE 
(1889-1958)
"Satan dans la Cité"

"A guerra é sem trégua e sem piedade entre a Revolução e os que permanecem fiéis a Deus sobre a terra, porque a Revolução é uma tentativa de organização do mundo sem Deus e contra Deus. É o mais formidável dos erros. É a heresia total". (Pe. Charles Maignen. "La souveraineté du Peuple est une hérésie")


Em relação ao ponto que tocamos, a heresia é flagrante e fora de dúvida. Pois a soberania do povo é incompatível com o dogma do pecado original e da mancha primitiva do homem. Se, com efeito, o mal existe no homem desde o seu nascimento, se o homem traz em si más tendências que não podem ser combatidas nem freadas senão pela graça e uma autoridade esclarecida, como ensina o cristianismo, é absurdo proclamar o homem incondicionalmente soberano e independente. É o que proclamam em alta voz Jean Jacques Rousseau e todos os filósofos ou doutrinadores da revolução. É o que, seguindo seus passos, reconhecia faz pouco tempo Edouard Herriot, como postulado fundamental: “A democracia tem por fundamento um grande ato de fé na bondade da ‘natureza humana’”. 
Contra o dogma do pecado original, a soberania do povo erige, pois, o da bondade e o da retidão naturais, da “imaculada concepção” do homem, segundo a célebre expressão de Blanc de Saint-Bonnet.
A soberania do povo permite que Lúcifer se levante novamente contra a ordem divina e satisfaça ao mesmo tempo seu espírito de vingança e sua eterna malícia. Com a reivindicação da “imaculada concepção” do homem visa descontar a decadência que seguiu a falta de nossos primeiros pais. E o Tentador evidentemente experimenta uma sutil satisfação ao renovar para nós a queda primitiva, fingindo querer nos livrar de suas conseqüências e ao fazer cada um de nós tropeçar como nosso primeiro pai e pelo mesmo motivo. Pois a causa e o estimulo da rebelião original foi a soberba: “Sereis como deuses!” A afirmação da soberania individual e popular procede da mesma tendência; está marcada intrinsecamente pelo mesmo vício; não se poderia admiti-la nem tampouco praticá-la sem dar provas de uma vaidade ao mesmo tempo criminosa e cômica e de uma insurreição deliberada contra a ordem das coisas tal como foi estabelecida por Deus em castigo a falta e, por conseqüência, sem incorrer em uma nova pena.


A soberania do povo é satânica enquanto pretende expulsar Deus da sociedade e proclamar contra Ele os falsos Direitos do Homem, exatamente como Lúcifer pretendeu substituir a Deus no Céu e proclamar contra Ele os falsos direitos dos anjos rebeldes.
É satânica enquanto nega explicita e insidiosamente os dogmas essenciais da fé cristã: o da queda original e da mancha radical do homem e o de que toda autoridade reconhece sua fonte exclusiva, sua regra e seus limites em Deus.
É satânica, por conseguinte, enquanto baseia toda organização política e social na insubordinação e na soberba e faz deste pecado, pai de todos os vícios, a mola propulsora de toda atividade das nações.

É a heresia de nossa tempo, dizia o Cardeal Gousset, que se fez um bom profeta. Será tão daninha e tão difícil de extirpar como o jansenismo. Será mais ainda, pois ultrapassa imensamente em malícia e extensão.

***
Fonte: Satan en la Ciudad. Buenos Aires: Editorial Nuevo Orden, 1965, pp. 86-89.
Tradução: Fernando Rodrigues Batista

domingo, 2 de fevereiro de 2014

UM POEMA DE CHESTERTON DEDICADO A VIRGEM MARIA


GILBERT KEITH CHESTERTON
(29 de maio de 1874 – 14 de junho de 1936)


A Virgem Maria

Nossa Senhora partiu para um estranho país
Onde é coroada Rainha.
Não era preciso que A retivessem, ou que A interrogassem,
Mas que A vissem.
E ficaram eles deslumbrados com a Sua beleza excelsa,
Exatamente como nós.
Nesse estranho país, Nossa Senhora traz uma coroa
- A que Ele Lhe deu;
Mas Ela não Se esqueceu de dizer aos Seus companheiros
Que A chamassem em seu auxílio.
E se ouvirmos chamar um homem por Seu nome,
Pode este levantar-se e bradar às portas da morte.

***

Fonte: Gilbert Keith Chesterton. Regina Angelorum, segundo Collected Poems, 1935. Citado no livro “O primeiro amor do mundo” de Fulton Sheen.



LIÇÕES DE SAINT-EXUPÉRY

 
ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
(29 de julho de 1900 – 31 de julho de 1944)

SAINT-EXUPÉRY (1900-1944), no dizer de Michel de Saint-Pierre, pertence à linhagem dos Maurras, Barrès, Bernanos, Montherlant, Drieu La Rochelle, Brasilach, Jacques Ploncard d´Assac – poderíamos acrescentar os nomes de Gustave Thibon e Marcel de Corte -; homens que souberam levantar a voz em defesa da condição humana, ameaçada pela tecnocracia totalitária, e o fizeram anunciando galhardamente verdades das mais necessárias para o homem do nosso tempo. Note-se, porém, que a defesa da condição humana de que se fala em tudo destoa do "humanismo maçônico" entoado pela ONU e pelos marxismos de todos os matizes e isto se notará facilmente em alguns excertos extraídos de sua obra póstuma: “Cidadela”  (Tradução de Ruy Belo, Lisboa: Aster). 

“- Quero que amem as águas da fonte. E a superfície ininterrupta da cevada verde, recozida na crepitação do verão. Quarto que glorifiquem o regresso das estações. Quero que se alimentem, semelhantes a frutos que se realizam, de silencio e vagar. Quero que chorem muito por muito tempo os seus lutos, que prestem demoradas homenagens aos mortos, porque a herança passa lentamente de geração para geração. (...) Deus faz-te nascer, faz-te crescer, enche-te sucessivamente de desejos, de pesares, de alegrias e de sofrimentos, de cóleras e de perdões, até que te faz ingressar de novo n’Êle. E, no entanto, tu nem és aquela estudante, nem aquele esposo, nem aquela criança, nem aquele velho. Tu é aquele que se realiza”. (I, p. 17)

***
“Quando nenhum elemento estável liga as gerações umas às outras, a troca deixa de ser possível e o tempo passa a correr tão inútil como a areia de uma ampulheta. (...) Porque eu respeito em primeiro lugar o que dura mais do que os homens (...) Mas não espero nada do homem, se ele só trabalhar para a sua própria vida e não para a sua eternidade" (VI, pp. 32).

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“(...) a qualidade da civilização do meu império não repousa sobre a qualidade dos alimentos, mas sim sobre a das exigências e sobre o fervor do trabalho. Não é feita da posse, mas sim da dádiva. Civilizado, para mim, é aquele artesão que se recria no objeto e ao mesmo tempo passou a ser eterno, pois o abandonou o medo de morrer. Civilizado também aquele que combate e se troca pelo império. Mas estoutro embrulha-se sem beneficio no luxo comprado nas casas dos mercadores. (...) Sei dessas raças abastardadas que deixaram de escrever os poemas e apenas os lêem, que deixaram de cultivar o solo e passaram a apoiar-se nos escravos. É contra eles que as areais do Sul prepararam eternamente, na sua miséria criadora, as tribos ardentes que hão de subir até aqui, para a conquista das provisões mortas. Não amo os sedentários do coração. Aqueles que não trocam nada jamais se tornam coisa alguma. E a vida não terá servido para os amadurecer. E o tempo corre por eles como o punhado de areia, e perde-os. Que hei de remeter a Deus em nome deles? Quando deixaram desabar o deposito ainda por encher, é que pude avaliar bem a sua miséria. (...) A mágoa é sempre feita do tempo que corre e não formou o seu fruto” (VI, pp. 35).

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“Porque eu apenas me tenho preocupado dos direitos de Deus através do homem. E a verdade é que sempre concebi o mendigo como embaixador de Deus, sem por isso lhe dar demasiada importância. Mas Deus me livre de reconhecer os direitos do mendigo, da úlcera e fealdade do mendigo, embora ele e os companheiros as tratem como ídolos. (...) Lembro-me de ver um leproso rindo gordurosamente e limpando um dos olhos com um trapo sórdido. Era acima de tudo vulgar e estava todo satisfeito com sua baixeza. Meu pai decidiu o incêndio. E aquela turba, que tinha em muito as espeluncas bolorentas, começou a fermentar, reclamando em nome dos seus direitos. O direito à lepra no bafio. – Isto é natural – disse meu pai voltando-se para mim – porque, segundo eles, a justiça traduz-se em perpetuar aquilo que existe. E eles gritavam, apoiados no direito à podridão. – Se tu deixas que se multipliquem os hipócritas – continuou meu pai -, nessa altura nascem os direitos dos hipócritas. Os quais são evidentes. E nascerão cantores para os celebrarem” (VIII, p. 39).

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“- Obriga-os a construir juntos uma torre e vais ver que passam a ser como irmãos. Mas se queres que se odeiem uns aos outros, arroja-lhes um punhado de trigo. (...) Uma civilização repousa sobre o que se exige dos homens, não sobre o que se lhes fornece. (...) – Homem – dizia meu pai – é em primeiro lugar aquele que cria. E só são seus irmãos os homens que colaboram. E só se pode dizer que vivem aqueles que não encontraram a paz nas provisões arrecadadas. (...) Não queiras inventar um império onde tudo seja perfeito. (...) Inventa um império onde tudo seja simplesmente fervoroso”. (IX, PP. 43-44)

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“Só o sentido das coisas conta para o homem. (...) - Ora vê – dizia-me – como eles começam a tornar-se gado e a apodrecer docemente... não na sua carne, mas nos seus corações. Porque tudo para eles perdia o significado” (XI, pp. 49-50).

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“Em nome da justiça, cometeram assassínios sem conta. A justiça deles era principalmente igualdade. E quem quer que se distinguisse fosse no que fosse via-se esmagado pelo número. - A massa – dizia-me meu pai – odeia a imagem do homem, porque a massa é incoerente, puxa em todos os sentidos ao mesmo tempo e anula o esforço criador. É certo que o homem não deve esmagar o rebanho. Mas não procures aí a escravatura: essa manifesta-se quando o rebanho esmaga o homem” (XI, p. 51).

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“E eu me lembrava das palavras de meu pai: ‘se quiseres que eles sejam irmãos, obriga-os a construir uma torre. Mas, se quiseres que se odeiem, arroje-lhes um punhado de trigo’. Contatamos que eles iam perdendo a pouco e pouco o uso das palavras, de que já não precisavam. E meu pai passeava-me por entre essas faces ausentes, que olhavam para nós sem nos conhecerem, embrutecidas e vazias. Já só emitiam essas rosnadelas vagas, que reclamam o alimento. Vegetavam, sem magoas, sem desejos, nem ódio, nem amor. Em breve, deixaram mesmo de se lavar e nem sequer matavam os bichos, que assim foram prosperando. Começaram a aparecer os cancros e as ulceras. O acampamento começou a empestar o ar. Meu pai tinha medo da peste. E, sem dúvida, também pensava na condição do homem.
- Estou disposto a acordar o arcanjo que dorme, abafado, debaixo do esterco. Porque não são eles que eu respeito, mas é Deus através deles” (XI, pp. 51-52).

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“É uma coisa estranha: os homens perdem o essencial – fazia notar meu pai – e não dão por isto (...). E o homem, que ignora o desastre, não chora a sua plenitude murcha. (...) É por isso que convém manter permanentemente acordado no homem aquilo que é grande, e por isso também importa convertê-lo à sua própria grandeza. Porque o alimento essencial não vem das coisas, mas sim do laço que liga as coisas” (XII, pp. 52-53).

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“O cedro, quando a borrasca lhe quebra os ramos e o vento de areia o enrijece e ele cede ao deserto, não é que a areia se tenha tornado mais forte, foi ele que renunciou e abriu a porta aos bárbaros” (XIII p. 55).

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“Perguntava a mim próprio, no silencio do meu amor: ‘Por que é que eles não querem morrer?’ E pedia uma resposta à minha sabedoria. Não se morrer por carneiros, nem por cabras, nem por lares, nem por montanhas. Os objetos subsistem, sem necessidade de lhes sacrificar seja o que for. Mas já se morrer para salvar o invisível laço que os liga uns aos outros e os transforme em propriedade, em império, em rosto reconhecido e familiar. Por essa unidade já uma pessoa se troca, porque morrer também é construí-la. A morte paga, graças ao amor. E aquele que trocou a pouco e pouco a vida pela obra bem feita e mais duradoura do que a vida, pelo templo que caminha de século em século não hesita morrer se os seus olhos são capazes de distinguir o palácio da confusão dos materiais, e se anda deslumbrado por aquela magnificência e deseja fundir-se nela. Deixa-se receber e envolver no amor de uma realidade que é maior do que ele” (XIII, pp. 55-56).

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“Aí está - dizia eu - a verdade do homem. Ele só existe para a sua alma. À testa da minha cidade, porei poetas e padres. E eles farão desabrochar o coração dos homens” (XXI, p. 80).

A ESPERANÇA

GUSTAVO CORÇÃO
(17 de dezembro de 1896 – 6 de julho de 1978)

Meditemos diante de Deus, e demoremo-nos na consideração de Seus dons.
Pelo leite e pelo sangue da Sagrada Doutrina, sabemos que para vivermos cristãmente, isto é, para nos entregarmos totalmente aos trabalhos do Espírito, que opera em nós a modelagem do divino exemplar, para assim podermos voltar ao Pai, precisamos possuir órgãos, forças, faculdades espirituais que só Deus pode dar, e sem as quais todos os nossos esforços se perderiam em disparates e confusão. 
Sabemos que esses dons e virtudes infusas que nos vêm de Deus são três teologais: Fé, Esperança e Caridade, e quatro morais: prudência, justiça, força e temperança. Sabemos que a essas sete virtudes a Sagrada Doutrina acrescenta os sete Dons do Espírito Santo, e que a esses dons faz corresponder às bem-aventuranças e os frutos. E é com esse equipamento que lutaremos para chegar ao Reino de Deus, que já está entre nós germinalmente, e que desabrochará um dia na Glória.
No capítulo XIII da 1ª Epístola aos Coríntios, São Paulo nos fala das três virtudes teologais nestes termos que serão repetidos pela Igreja até o fim do mundo: “Agora vemos por um espelho, em sinais e enigmas, mas depois veremos face a face; no presente conheço apenas parcialmente, mas um dia conhecerei como sou conhecido. Agora possuímos estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior é a caridade”.
 A fé e a esperança passarão, porque são virtudes de peregrino, mas a caridade não passará, porque já é, aqui e agora, o mesmo santo amor. Há, portanto, entre a caridade e as outras duas virtudes teologais uma essencial diferença de modo: enquanto aquelas passam por ser instrumentos da obscura peregrinação, a caridade é idêntica, homogênea e constante, no exílio e na pátria. Lá será mais perfeita e mais livre, mas será a continuação da mesma virtude que agora nos polariza a vida pela vontade de Deus.
Há, porém, entre a Fé e a Esperança, ambas peregrinas, uma diferença na maneira de passar ou de transmutar-se. Toda a tradição católica ensina que a Fé é uma visão, um lumen fidei, é, seminalmente, o mesmo lumen gloriæ com que, no céu, veremos Deus face a face. A visão no céu é a mais refulgente das evidências, e por isso independe absolutamente do ato de confiança. Nesse sentido difere da Fé e até se pode dizer que se opõe ao que há de obscuro e enigmático nos sinais e no ato de confiança da Fé, mas as verdades de Deus, vistas pela fé em sinais e enigmas, ou vistos face a face, são as mesmas. E nisto pode-se dizer que algo da fé não passará. Ao contrário, é mais desconcertante e mais provocante, em sua descontinuidade, o ato de esperança em relação à beatitude dos bens finalmente possuídos em toda a plenitude.
Enquanto o ato de fé, na sua obscuridade, consiste desde já numa antevisão, num lampejo do mesmo lumen gloriæ, o ato de esperança, ao contrário, se choca com todos os desejos de felicidade deste mundo. Os mais legítimos, os mais honestos desejos de felicidade, antes mesmo de se tornarem crispações obsessivas de alma humana, já contrariam a esperança teologal que só se nutre de renúncias. É verdade que o mesmo apóstolo nos disse que devemos viver alegres na esperança, mas logo acrescenta: e pacientes na tribulação. “Spe gaudentes: in tribulatione patientes”. (Rm 12, 12).
É fácil dizer convencionalmente que o cristão deve ser alegre, mas essa alegria convencional que se propõe como atitude cristã antes de atendidas as primeiras exigências da santidade são um disfarce da alma, ou um jogo de palavras, que em nada se parece com a alegria na esperança ensinada pelo Apóstolo. Todos os autores espirituais da grande tradição católica sempre ensinaram que à virtude teologal da esperança se prende o dom do temor, e o dom da ciência com que a alma vê o nada das criaturas diante do Ser pleno de Deus; e a bem-aventurança que na mesma linha se põe é a da das lágrimas. “Bem-aventurados os que choram”. Este é o enunciado que Nosso Senhor nos deixou da alegria na esperança. Felizes os que choram, sim, mas felizes realmente são os que choram na esperança. Porque, como em todas as coisas deste mundo, há lágrimas que vêm da carne do espírito da esperança. Por onde se vê que o alegrar-se na esperança traduz-se por chorar na esperança, e por dizer com a coragem dos santos: “muero porque no muero”. 
Insistimos neste ponto: das três virtudes teologais, a mais contrastante com os anseios naturais da vida humana, a mais transformadora de critérios e valores, é, sem dúvida, a peregrina virtude da Esperança, que Péguy e Brasilliach, dois poetas, dois heróis, que os mandarins da gauche catholique rejeitaram, viram com os traços de uma menina pobre, espécie de gata borralheira das virtudes teologais.
No mundo moderno, a feroz avidez de bens terrestres, a polifórmica gulodice dos olhos, dos ouvidos, da boca e do sexo ainda procura uma forma de fé adulterada, ainda nos engana com uma hedionda caricatura da caridade, mas a divina Esperança é frontalmente rejeitada. Toda a crise do mundo católico secularizado, temporalizado, agachado, ávido de terra, de pó, de palha e de carne, é principalmente uma febre de desesperança. Os chamados progressistas querem aqui e agora o pagamento das promessas, e ameaçam levar à falência a Igreja, má pagadora neste mundo. Querem o resgate dos títulos de felicidade terrestre, e não o das almas.
                                                                                                   
07-10-1972

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A CRUZ: NÃO HÁ OUTRO ESCAPE!

                                         Por: FREI BENVINDO DESTAFANI O. F. M.



O século desvairado julga o Crucificado, um Deus flagelado, coroado de espinhos, ensangüentado, ferido, coberto de ignomínia, um símbolo absurdo de triste, de sofrimento e de dor, o cumulo da loucura.
Entretanto a cruz é o sinal que se encontra nos lares bem formados, nas torres das igrejas, nos túmulos cristãos. A cruz é o alivio dos desventurados e a esperança dos moribundos. A cruz enternece na alegria, consola no abatimento, é penhor de vida na sombra da morte. O mundo não entende a loucura da cruz de que fala o Apostolo São Paulo.
- “Nos stulti propter Christum”: “Somos loucos de amor por Cristo”.
Humilhar-se, abater-se, perdoar, renunciar aos gozos, repudiar a avareza, a ambição, a gloria, o furor do bem-estar, eis a loucura da cruz!
A sacrossanta cruz reitera todas as imolações do Homem-Deus, desde o primeiro vagido do presépio até o derradeiro gemido do Calvário, imolações essas espontâneas, conforme predisse o profeta:
- “Oblatus est quia ipse voluit:” “Voluntariamente Jesus se sacrificou”.
A cruz é obra estupenda de Deus. É o pólo de toda criação. É a síntese do amor para quem algumas horas são longos anos! É a santa impaciência do amor!
O mundo sem a bendita cruz seria insuportável; a vida, sem esperança; as desgraças, sem consolação.
Na cruz, o amor é sua própria vítima, seu próprio altar, seu próprio pontífice. Na cruz está a gloria da matéria, a apoteose da castidade. Porque a Justiça divina viu no Crucificado a responsabilidade da pena, mas não a malicia da falta.
A humanidade, tão inclinada pela prevaricação adâmica aos furores da impureza e as orgias da concupiscência, precisa do salutar remédio da santa cruz.
Porquanto, o povo que não presa a cruz, que zomba do Crucificado, é um povo morto, perderá sua liberdade, como aconteceu com o antigo império romano: Roma come, bebe, diverte-se e morre!
Não se encontra o Redentor senão com a cruz.
Por conseguinte, todos a quem não satisfaz a realidade presente; todos que tem um ideal; todos que possuem fome e sede de justiça deverão amar o sinal da nossa salvação.
Não se pode amar o divino Libertador sem amar também a sua cruz. Muitos querem o reino celestial, mas não querem ir para lá pelo caminho da cruz.
Muitos querem as consolações de Nosso Senhor, mas detestam seus trabalhos, suas fadigas, seus padecimentos.
Muitos desejam o doce e belo Tabor, mas aborrecem o espinhoso e acerbo Calvário. Muitos almejam ser companheiros de suas alegrias, mas poucos preferem compartilhar de suas amarguras.
Ninguém quer a cruz de Cristo ou, se a deseja, há de ser conforme a seus gostos, a seus caprichos, a suas inclinações, talha a seu bel-prazer.
Todavia ninguém poderá viver sem cruzes. E face da universalidade da cruz, há somente um dilema. Ou carregá-la com paciência e resignação e ser amigo de Jesus, ou detestá-la e ser inimigo de Jesus conforme Ele mesmo afirmou:
- “Quem não está comigo, será contra mim!”
Não há outro escape!

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Fonte: Ao entardecer, São Paulo: Edições Paulinas, 1957, p. 178-180.

O AMOR E SUA DEFORMAÇÃO MODERNA

THOMAS MOLNAR
(26 de julho de 1921 – 20 de julho de 2010)

Certamente nunca existiu na história uma época que evocou a cada esquina a palavra amar, assim como seus sinônimos mais ou menos apropriados: fraternidade, cooperação, acordo, dialogo ou vontade de paz. Esta freqüência é um sinal de que estamos precisamente desprovidos de amor e que sua evocação apenas produz em nossos contemporâneos um sentimento vago de vazio adornado com inúmeros “slogans”. Não se deve esquecer que se trata do século GEORGE ORWELL, o primeiro a desmascarar a significação manipulada das palavras: eis aqui a base da grande mentira de que fala também SOLJENÍTSIN. Será necessário, segundo o Newspeak com o que ORWELL criou principal ministério do regime do Grande Irmão, substituir por ódio a palavra amor tão decantada por nosso século?
Minha pretensão é demonstrar que a confusão atual entre amor e ódio é apenas parcialmente uma criação de um “ministério do amor” qualquer, tal como descrito por ORWELL. Trata-se antes de duas concepções distintas e opostas do amor, e de um deslize (que esperamos provisório) de uma para a outra. Nesta ótica somos testemunhas de uma mudança na significação dos termos, mudança ilustrada, desgraçadamente, em numerosos casos da linguagem comum e, sobretudo, da linguagem político-ideológica. O deslize consiste no abandono, eu diria quase no esquecimento, da significação grega e cristã, e da adesão à outra significação na qual o amor não se dirige a uma pessoa, seja divina ou humana. Trata-sede uma despersonalização do amor que leva em si mesma uma contradição.
O nosso conceito ocidental de amor está relacionado com duas raízes: o eros dos gregos e o ágape dos cristãos. Falando do primeiro, tem-se o costume de pronunciar o nome de PLATÃO e os títulos de seus diálogos: Fedro, Symposion e outros. O amor erótico entende-se então com o desejo que tem o vazio de preencher-se, o desejo do feio aspirando à beleza, em fim, o desejo da cópia de se aproximar do original. Nos três casos é o “pobre” que se eleva ao “rico” o que significa que o primeiro já possuía, embora apenas em potência, a capacidade de abarcar e assimilar o segundo. Entre outras coisas, toda nossa pedagogia ocidental se funda nesta capacidade de imitação e elevação, como demonstra WERNER JAGER em sua obra Paidéia.
É necessário fazer notar que esta concepção do eros, que podemos chamar pura, foi se degradando pouco a pouco com a filosofia grega: em PLOTINO, cinco séculos depois de Platão, o erotismo desaparece para dar lugar a um misticismo pouco matizado e frio: no sistema plotiniano os seres diversos, emanações mais ou menos imperfeitas a partir da Inteligência Primordial, serão, ao fim, absorvidas na Unidade, mas até que chegue neste ponto não poderão aspirar um estado melhor do que o que possuem. Sua re-absorção no Uno não é o resultado de um ato de desejo, de um ato erótico, de um ato de amor, senão de um automatismo inscrito no mecanismo universal. Por conseguinte, o Eros não tem objeto, salvo ente alguns sábios como PLOTINO mesmo, que alcançam a fusão com o Uno e caem esgotados.
A noção de ágape é a grande contribuição cristã à dialética do amor. eros é ascensional, sobe do desprovido ao pleno e completo, é o desejo de tocar, de ver, de sentir; o ágape desce e se difunde, se entrega e faz viver. Sua melhor imagem é a criação pela qual Deus, contrariamente a Unidade abstrata e isolada de PLOTINO, faz sair o ser do nada, entrega sua abundancia sem que ele mesmo diminua, e diversifica (o que Platão já notou) sua criação em uma extraordinária multidão de coisas que constituem um conjunto harmonioso, o cosmos. O ágape não contradiz o eros, ao contrário, os dois impulsos se encontram em números níveis. Quando amamos desejamos fazer os outros participes de nossa essência, de nosso ser, e isto nos dois sentidos; pois desejamos repartir a substância do ser amado. A própria vida em sociedade se funda sobre este amor, pois a justiça, a educação, o embelezamento do meio, cada uma destas atividades não são senão uma forma de distribuir a abundancia, de modo que do pobre (desprovido) surja o rico (pleno, abundante).
O amor está assim inscrito em nossa essência de criaturas, preside a investigação cientifica, a criação das obras de arte, a fundação de instituições, em uma palavra, todas as etapas da vida em comum. O amor supremo segue sendo então uma espécie de fusão, para o homem, do ágape e do eros: querer para o nosso próximo o que Deus quer para nós Não, repitamos, à absorção na Unidade impessoal, segundo a doutrina de PLOTINO; não ao aniquilamento do desejo de viver como nas religiões orientais, senão o completo desenvolvimento da criatura, a aventura pessoal, a imitação da pessoa que é a fonte mesmo da vida, que é a vida. 
Se este é o sentido do amor formulado e vivido no ocidente, detectemos agora o deslizamento em direção ao outro sentido mencionado no inicio. Este outro sentido se baseia, primeiramente, sobre um conceito diferente da realidade, da criação, de Deus e do homem, e de suas relações. Já o entrevimos em PLOTINO: o mundo não é criado, é uma emanação sob uma espécie de coação exercida sobre o Uno. Nada neste processo é pessoal, o desejo de imitar não existe e, por conseguinte, nem o eros. O ágape, que desce e dá sem esgotar-se é substituído por uma fria contemplação.
O místico é o que contempla, mas não ascende ao divino e se serve como exemplo aos homens é como um atleta admirado por suas façanhas, por sua renuncia. A caridade, nem tampouco o amor, podem ter sentido neste universo, essencialmente impessoal, frio, não erótico.
E estrutura do pensamento plotiniano nos permite pressentir a do universo ideológico em que estamos imersos há décadas. Ai está a causa do deslizamento da noção de amor. A maioria das ideologias que abundam em nosso século considera o mundo como um lugar radicalmente mal, não apenas imperfeito, e, portanto, reformável, senão irremediavelmente perdido: seja não criada (produto do azar), seja criada por gênio perverso, mal, quase diabólico. Logo nos damos conta de que o homem no mundo da ideologia não é uma criatura, não existe acima dele uma providência, traz o seu sentido em si mesmo, não é responsável por nada nem por ninguém. Ama ou odeia conforme o objeto satisfaça ou não suas necessidades. Reconhecemos aqui o mundo do Senhor e do Escravo proposto por Hegel em seu esforço para explicar o sentido da história. E como no esquema hegeliano a sociedade é um artifício, tudo na sociedade – educação da juventude, embelezamento da cidade, concordância das instituições sob o bem comum -, tudo é projeção do medo, do ódio, da vontade de superar os outros, pois senão serão eles que me matarão. Ao contrário deste universo monstruoso, a ideologia – hegeliana, rousseauniana, marxista ou sartriana – nos convida a trabalhar por um porvir no qual todos os males serão corrigidos por uma utopia crônica, não temporal. Tudo é obscuridade aqui – no presente -, tudo será luz lá – no porvir -.  Aguardando este porvir iluminado, aquele que busca fazer do mundo atual um lugar habitável, melhor e mais belo, prolonga por isto mesmo um lugar essencialmente criminoso e insuportável. “Não temos o direito, escreve Sartre, de criar obras belas neste mundo tão horroroso aonde o homem explora o homem”. “Não é ainda o mundo em que o ser e o parecer coincidem”, dizia ERNST BLOCH. Estas palavras emanam de ideólogos aos olhos de quem o mundo é um monstro, esperando que torne angélico.
O amor é considerado para mais tarde, para o momento utópico no qual, segundo BLOCH, Deus surgirá da essência ainda não desenvolvida do homem. Em uma palavra, o mundo tal qual ele é, se mostra, para o ponto de vista do ideólogo da utopia, uma negatividade; só existirá propriamente no porvir no qual o homem será o seu próprio deus.
Por conseguinte, em oposição ao cristão, o ideólogo desloca o reino do amor e da permissão para amar à um estado de coisas futuro, e em sua espera fica circunscrito à uma entidade na qual reconhece a força motriz deste porvir: partido político, raça, Estado totalitário, histórica, evolução bio ou psicológica. O não amar, têm para os outros o que Sartre chama “a mortal solicitude”, quer dizer, a vontade fazer com que os seres humanos se conformem, se necessário por meio de massacres, eliminações e torturas, ao tipo ideal projetado no provir. Compreendemos então as declarações de IENG SARY, ministro de assuntos exteriores do Camboja, quando diz que se não houvesse ocorrido a invasão de seu país pelos vietnamitas, a população teria conhecido a abundancia em 1980. Isso após o extermínio de dois milhões de cambojanos, seguindo a política anunciada pela equipe dirigente, segundo a qual bastaria um milhão de comunistas duros e puros para construir a nação!
Ieng Sary e seus cúmplices amam o povo cambojano? É evidente que o seu amor se dirige não ao povo tal qual ele é, senão como deveria ser. O ágape e o eros não têm lugar e a "moral solicitude" mortal que usurpa o seu lugar está repleta de ódio, de combate (dialética), de violência e de brutalidade erigida em sistema. Isto está na natureza das coisas, pois o ágape e o eros só são concebíveis pelo reconhecimento de Deus acima dos homens, pois que é a pessoa boa por essência. Os lideres do Camboja, assim como os outros ideólogos, se consideram deuses, oniscientes e onipotentes, mas como, ao fim e ao cabo, são eivados de paixões humanos, comandam os seus súditos segundo um simulacro de amor, no qual o eros e o ágape aparecem como caricaturas.    
Isto parece evidente quando nos damos conta de que o amor, em lugar de ser difundido, compartilhado e multiplicado, é monopólio destes deuses humanos reinantes. Só se reconhece e se autoriza uma espécie de amor: o do líder por seus súditos robotizados e o destes por ele. Todas as formas de amor são abolidas: a dos amantes, dos pais para com seus filhos, dos companheiros de uma mesma atividade, e também o amor para com as idéias distintas das aprovadas e proclamadas oficialmente. No Camboja, não há família, nem educação das crianças, exceto as canções e slogans comunistas; e nos países comunistas, em geral, não há instituições distintas da vontade do líder e dos vastos projetos que tem por finalidade a transformação da natureza humana, se necessário pela escravidão e pelo extermínio.
O amor se converte em ódio, embora continue chamando-se amor. Se fosse capaz disso, o líder absorveria a população (pelo menos o que resta após as purgas); mas como isto é impossível, reduz o seu numero a um mínimo manipulável formado e educado à sua imagem ideológica.
Esta atitude se justifica pela suposição de que o mundo, tal e como é, estropiado, desfigurado pelo egoísmo, a exploração, as paixões e outros males, não é digno de amor, e as pessoas que dele fazem parte são, elas também, intrinsecamente perversas; seja por que são o produto de condições corrompidas (a tese de MARX), seja porque são criaturas do Príncipe da Trevas (a linguagem do gnosticismo antigo). O exemplo cambojano ilustra isto mais uma vez: os habitantes que estiveram em contato com o exterior – médicos, professores ou comerciantes que venderam seus objetos ou seus serviços – foram os primeiros exterminados, antes que as outras categorias. Este extermínio foi inspirado na “mortal solicitude”, pois permitia a preservação da “boa semente”. Por conseguinte, não os indivíduos, mas a humanidade coletivamente é que é o objeto do amor, pelo menos parte da humanidade acessível ao líder. A morte e a solicitude caminham juntas: uma parte da humanidade é sacrificada para que os eleitos possam entrar na luz do amanhecer.   
O amor, tal como o definimos, feito de ágape e de eros, encontra-se decomposto e degradado. Vimos que o ágape, o amor cristão, é abolido junto com a negação da criação divina e de tudo que dela decorre, junto com a bondade do real. No mundo refeito, que é um artifício dos ideólogos, o amor não é ágape, é paixão dirigida à abolição de todas as outras paixões, começando pelas relações humanas; estas são substituídas por um supermecanismo, facilmente controlado, porque carece de trocas e está desprovido de emoções. Este “novo sentimento” – que não se pode chamar amor – é fundado sobre o ódio à criação e à condição humana, e encontra sua razão de ser no mundo imaginado do porvir. Mas este mundo é uma impossibilidade ontológica, cujos habitantes, finalmente seres humanos, não poderão ser re-estruturados nem pelos bosques do Camboja nem ainda nos cursos universitários do ocidente. O ideal preconizado não se aproxima do ideal, o “mundo novo” foge sempre de seus perseguidores ávidos e obstinados. A sua solicitude, o seu zelo, não é senão, no fundo, ódio por material humano passivo, incapaz de transformar. 
Se o ágape é abolido e transformado em seu oposto, não se dá o mesmo com o eros. O ágape significa a relação com Deus; uma ideologia atéia pode pretender durante certo tempo substituir o amor divino por um projeto gigantesco que impressiona a população e suscita entusiasmo. Por exemplo, “construir o socialismo”; “unir o proletariado”, ou um estado de coisas equívoco se estabelece, no qual um homem reclama para si o estatuto divino e reina em nome de valores cristãos pervertidos. É o caso de THOMAS MUNZER que combina, no século XVI, o fim escatológico da história e a revolução terrena. ERNST BLOCH e ROSA LUXEMBURGO encontraram na figura de MUNZER o primeiro revolucionário em que se funde o elemento evangélico e o elemento marxista.
O ágape é eminentemente divino, e as falsas tentativas de “humanizá-lo” acabam sempre em catástrofe. O eros, por outro lado, é eminentemente humano, é a tensão para os outros, amiúde por intermédio de objetos e de criações do espírito ou da imaginação. O poema do amante ou um ramo de flores, mas também uma catedral ou uma sinfonia são mediadores nas relações humanas, o que mostra, ademais, que o “erotismo” é uma relação empobrecida nas relações em que figura o eros. É evidente que o espírito do ágape penetrou no eros dos gregos no curso dos séculos cristãos, de modo que o eros é para nós inconcebível sem que se converta em erotismo e logo em pornografia. O eros e o ágape figuram nos melhores momento da Hélade, nos diálogos de PLATÃO especialmente, aonde ALCEBÍADES e SÓCRATES são atraídos um ao outro pelo eros, mas, da parte deste último, pelo desejo de beneficiar ao jovem com seus conhecimentos e elevá-los à sabedoria.
Aonde a ideologia reina o eros está privado de ágape, se converte em grosseiro e brutal, não buscando mais que o seu próprio interesse. Em outras palavras, as relações humanas estão a partir de então marcadas pela só vontade de sobreviver e a sociabilidade se converte em violência.
As pessoas ficam submersas na atmosfera sartriana, na qual “o inimigo é o outro” e sua só presença é interpretada como uma ameaça. Enquanto individuo, o ser humano se submerge no solipsismo, e enquanto membro da sociedade, a besta prevalece, o que desperta violência sexual, o medo do vizinho e a luta permanente para subjugar o outro. Não é coincidência que no plano da filosofia contemporânea SARTRE não tenha podido redigir o seu prometido tratado de moral, que NIETZCHE não encontre lugar para a ética deste lado do super-homem, que HEIDEGGER seja incapaz de vencer a angustia, que WITTEGENSTEIN exclua toda possibilidade de um discurso racional sobre a moral. Também não se trata de coincidência se a atividade diária dos membros do Partido no regime comunista esteja sempre tomada pelo imperativo de “lutar”: destruir o inimigo de classe; entrar na concorrência para atingir a cota de produção; combater o que sobrevive da mentalidade burguesa, e assim sucessivamente. A linguagem totalitária esta salpicada de termos militares, sintoma de que a linguagem erótica se converteu em uma força negativa: cada um vê no outro um lobo, segundo a formula de HOBBES aplicada aos seres humanos selvagens que precedem o contrato social.
É característica do ideólogo não sentir-se obrigado a amar os seus próximos - ainda que lhe traga progresso e felicidade -, senão que ama apenas abstrações tal como o Partido, e a seu ver as denuncias contra pais e amigos são consideradas uma virtude.
ORWELL tinha uma intuição segura da erótica nas sociedades dominadas pela ideologia: os amantes praticam o amor desesperadamente em uma casa pequena, que reputam escondida de toda vigilância, enquanto que tudo o que lhes rodeia é frio, indiferente, hostil, sendo o próprio amor considerado como um ato anti-social por excelência.
Em um regime ideológico não existe o direito a uma vida privada, a ter sentimentos, a formar relações de afeto, pois cada instante, cada pensamento ou emoção, fora da vigilância do Partido e não orientado para o “futuro resplandecente”, é suspeitoso, por constituir uma partícula incalculável, a partir da qual poderia surgir uma partícula da liberdade.
Tomando, talvez, a novela de GEORGE ORWELL como modelo, o russo ALEXANDER ZINOVIEV concretiza um mundo sem amor a partir de suas experiências no seio da hierarquia política e acadêmica (as duas coincidem) da sociedade soviética. A diferença entre ZINOVIEV e os outros escritores da dissidência, é que em sua ótica esta sociedade é uma sociedade “natural”, no sentido de que o amor não está presente de nenhuma forma: o princípio político que domina é o bellum omnium contra omnes de HOBBES. Segundo o autor, tal o modelo de sociedade que seria a norma entre os homens se o ser humano fosse apenas o produto da planificação social e se existisse em um meio no qual as ameaças e os perigos de todos os instantes (ainda as ameaças e perigos institucionalizados) estivessem suspensos sobre suas cabeças. O escritor polaco ADAM MICHNIT fala a este respeito da “sociedade sovietizada”, aonde o significado das palavras foi destruído, e na qual os homens foram proibidos de fomentar reflexões não oficiais em relação a sua vida pública ou privada. O talento do novelista consegue criar o contraste entre a sociedade normal e a sociedade ideológica: em 1984 resta um espaço tolerado aos velhos dissidentes que jogam xadrez todas as tardes: no Porvir radiante, de ZINOVIEV, existe, além das intrigas do Partido e das traições dos amigos, uma velha roupeira indiferente à luta feroz para a sobrevivência ideológica, pois havia reduzido sua existência ao estritamente mínimo. Eis aqui um comentário terrível sobre um regime que supostamente devia trazer a felicidade a uma sociedade ódios de classe, mas na qual somente os marginalizados são capazes de reservar-se um metro quadrado de liberdade individual. No entanto, aqui também o amor é uma quantidade desconhecida e, de todos os modos, ilegal.
O que se pode aprender sobre o amor a partir do tema em contraponto do ódio como mortal solicitude? Primeiro, que a combinação do eros e do ágape compreende a totalidade do amor, as dimensões horizontal e vertical. Em segundo lugar, nos damos conta de que o eros, enquanto tal, amor exclusivamente humano, não é suficiente, pois se converte com facilidade em agressividade, violência e exploração egoísta do outro. O dinamismo erótico, pelo qual o sujeito tende para o mundo, tem necessidade de ser moralmente guiado para livrar-se do ego. Neste sentido deveria-se ampliar o dito aristotélico: o animal político deve ser “animal moral”, igualmente, para que possa inserir-se na sociedade de seus semelhantes, quer dizer, para que compreenda a necessidade de restringir o dinamismo, incontrolável por natureza, de seu eros.
Nossa terceira consideração em relação ao amor refere-se à sua interpretação pelos filósofos desde KANT. Com exceção de alguns raros pensadores modernos, a tendência geral tendo sido acentuar a dimensão social e política do amor, o que caricaturado no credo de Kwameh Nkhrumah, primeiro Presidente de Gana: “Basta conquistar o reino político, o resto nos será dado por acréscimo”, versão pervertida da mensagem de Cristo.
Esta politização do amor conduz logicamente à noção de “solicitude mortal” na qual o amor é absorvido pela política, e esta é concebida como uma ferocidade sem limites. Mas tarde, os existencialistas se rebelaram contra esta noção empobrecida do amor, mas KIERKGAARD até MARTIN BUBER não tiveram êxito: aquele foi incapaz de enraizar o ágape na inteligência divina, enquanto BUBER não deixou lugar à erótica. A relação entre o tu e o eu esquece a função mediadora dos objetos ente Deus e o homem, limitando assim o amor aos raros instantes de uma elevação quase mística. Voltamos a PLOTINO e sua negação de um mundo real e glorioso em si, que tem sua parte da abundancia divina.
KIERKEGAARD escreveu em algum lugar: “Do mesmo modo que um lago tranqüilo cujas águas estão nutridas por fontes invisíveis, o amor do homem tem suas raízes no amor de Deus. Se não houvesse fontes nas profundidades, se Deus não fosse amor, nem o pequeno lago nem o amor do homem existiriam”. O pensador dinamarquês não tinha o costume de por sobre o papel suas idéias banais. Esta passagem evoca a idéia de que deve-se compreender que o amor é algo mais que o sentimento recíproco entre os homens, e que deve-se incluir o principio pelo qual existe uma solidão. Isso não é hoje evidente imediatamente, pois nossos contemporâneos vêem como princípio da sociedade a luta de classes, a militância política, os conflitos e as revoluções. Ninguém pensa em negar tais fatos, mas não por isso é menos verdadeiro que a sociedade, enquanto tal, se funda sobre a necessidade racional que os seres humanos têm de aproximar-se entre si, de ser solidários, de desenvolver-se no seio da comunidade. Recusamos a tese positivista segundo a qual os indivíduos são átomos que se reúnem em grandes agregações, do mesmo modo que se unem as partículas em conjuntos maiores. Entres os seres humanos até mesmo as forças que os unem de forma mecânica são conscientes, queridas e penetradas de emoção. Em outros termos, a sociedade, as instituições do Estado, fundam-se sobre a razão, sobre a justiça e sobre a caridade. Ao fim: sobre sua origem comum.
Em nossos dias, sobretudo, percebemos esta verdade no espelho deformante dos regimes totalitários. Em ultima analise é o amor que prescreve aos regimes não totalitários o dever de trabalhar para a conciliação entre o completo desenvolvimento pessoa e a coexistência comunitária, porque nestes regimes sobrevive sempre a idéia de que o individuo e a sociedade são criação divina.
Ademais, a sociedade não totalitária reconhece o individuo como valor básico e a quem o Estado deve servir, pois esta é sua razão de ser.
Finalmente, a sociedade não totalitária tem como evidente que o passado e o presente estão ligados organicamente – pela via da tradição, da memória comum, da continuidade das leis – e que o presente não deve ser sacrificado por um porvir sempre problemático; o passado, igualmente, não deve ser reescrito segundo as regras subversivas do Newspeak orweliano em nome de um suposto imperativo da atualidade.
Uma sociedade que não observa estes princípios está fundada sobre o ódio ao homem, à realidade e ao tempo. Os lideres ideólogos manipulam estas três coisas. O resultado é a mentira denunciada sem cessar por alguns críticos: a mentira em relação à natureza humana, à estrutura do ser e à história.
Os objetivos últimos dos que desfiguram a imagem do homem concebido no amor, é o de mentir sobre a criação.

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Fonte: Revista Verbo (Madri), n. 185-186, 1980, pp. 555-565.