THOMAS MOLNAR
(26 de julho de 1921 – 20 de julho de 2010)
Certamente
nunca existiu na história uma época que evocou a cada esquina a palavra amar,
assim como seus sinônimos mais ou menos apropriados: fraternidade, cooperação,
acordo, dialogo ou vontade de paz. Esta freqüência é um sinal de que estamos
precisamente desprovidos de amor e que sua evocação apenas produz em nossos
contemporâneos um sentimento vago de vazio adornado com inúmeros “slogans”. Não se
deve esquecer que se trata do século GEORGE ORWELL, o primeiro a desmascarar a
significação manipulada das palavras: eis aqui a base da grande mentira de que
fala também SOLJENÍTSIN. Será necessário, segundo o Newspeak com
o que ORWELL criou principal ministério do regime do Grande Irmão, substituir
por ódio a palavra amor tão decantada por nosso século?
Minha
pretensão é demonstrar que a confusão atual entre amor e ódio é apenas
parcialmente uma criação de um “ministério do amor” qualquer, tal como descrito
por ORWELL. Trata-se antes de duas concepções distintas e opostas do amor, e de
um deslize (que esperamos provisório) de uma para a outra. Nesta ótica somos
testemunhas de uma mudança na significação dos termos, mudança ilustrada,
desgraçadamente, em numerosos casos da linguagem comum e, sobretudo, da
linguagem político-ideológica. O deslize consiste no abandono, eu diria quase
no esquecimento, da significação grega e cristã, e da adesão à outra
significação na qual o amor não se dirige a uma pessoa, seja divina ou humana.
Trata-sede uma despersonalização do amor que leva em si mesma uma contradição.
O nosso
conceito ocidental de amor está relacionado com duas raízes: o eros dos gregos
e o ágape dos cristãos. Falando do primeiro, tem-se o costume de pronunciar o
nome de PLATÃO e os títulos de seus diálogos: Fedro, Symposion e outros. O amor
erótico entende-se então com o desejo que tem o vazio de preencher-se, o desejo
do feio aspirando à beleza, em fim, o desejo da cópia de se aproximar do
original. Nos três casos é o “pobre” que se eleva ao “rico” o que significa que
o primeiro já possuía, embora apenas em potência, a capacidade de abarcar e
assimilar o segundo. Entre outras coisas, toda nossa pedagogia ocidental se
funda nesta capacidade de imitação e elevação, como demonstra WERNER JAGER em
sua obra Paidéia.
É
necessário fazer notar que esta concepção do eros, que podemos chamar pura, foi
se degradando pouco a pouco com a filosofia grega: em PLOTINO, cinco séculos
depois de Platão, o erotismo desaparece para dar lugar a um misticismo pouco
matizado e frio: no sistema plotiniano os seres diversos, emanações mais ou
menos imperfeitas a partir da Inteligência Primordial, serão, ao fim,
absorvidas na Unidade, mas até que chegue neste ponto não poderão aspirar um
estado melhor do que o que possuem. Sua re-absorção no Uno não é o resultado de
um ato de desejo, de um ato erótico, de um ato de amor, senão de um automatismo
inscrito no mecanismo universal. Por conseguinte, o Eros não tem objeto, salvo
ente alguns sábios como PLOTINO mesmo, que alcançam a fusão com o Uno e caem
esgotados.
A
noção de ágape é a grande contribuição cristã à dialética do amor. eros é
ascensional, sobe do desprovido ao pleno e completo, é o desejo de tocar, de
ver, de sentir; o ágape desce e se difunde, se entrega e faz viver. Sua melhor
imagem é a criação pela qual Deus, contrariamente a Unidade abstrata e isolada
de PLOTINO, faz sair o ser do nada, entrega sua abundancia sem que ele mesmo
diminua, e diversifica (o que Platão já notou) sua criação em uma
extraordinária multidão de coisas que constituem um conjunto harmonioso, o cosmos.
O ágape não contradiz o eros, ao contrário, os dois impulsos se encontram em
números níveis. Quando amamos desejamos fazer os outros participes de nossa
essência, de nosso ser, e isto nos dois sentidos; pois desejamos repartir a
substância do ser amado. A própria vida em sociedade se funda sobre este amor,
pois a justiça, a educação, o embelezamento do meio, cada uma destas atividades
não são senão uma forma de distribuir a abundancia, de modo que do pobre
(desprovido) surja o rico (pleno, abundante).
O
amor está assim inscrito em nossa essência de criaturas, preside a investigação
cientifica, a criação das obras de arte, a fundação de instituições, em uma
palavra, todas as etapas da vida em comum. O amor supremo segue sendo então uma
espécie de fusão, para o homem, do ágape e do eros: querer para o nosso próximo
o que Deus quer para nós Não, repitamos, à absorção na Unidade impessoal,
segundo a doutrina de PLOTINO; não ao aniquilamento do desejo de viver como nas
religiões orientais, senão o completo desenvolvimento da criatura, a aventura
pessoal, a imitação da pessoa que é a fonte mesmo da vida, que é a vida.
Se
este é o sentido do amor formulado e vivido no ocidente, detectemos agora o
deslizamento em direção ao outro sentido mencionado no inicio. Este outro
sentido se baseia, primeiramente, sobre um conceito diferente da realidade, da
criação, de Deus e do homem, e de suas relações. Já o entrevimos em PLOTINO: o
mundo não é criado, é uma emanação sob uma espécie de coação exercida sobre o
Uno. Nada neste processo é pessoal, o desejo de imitar não existe e, por
conseguinte, nem o eros. O ágape, que desce e dá sem esgotar-se é substituído
por uma fria contemplação.
O
místico é o que contempla, mas não ascende ao divino e se serve como exemplo
aos homens é como um atleta admirado por suas façanhas, por sua renuncia. A
caridade, nem tampouco o amor, podem ter sentido neste universo, essencialmente
impessoal, frio, não erótico.
E
estrutura do pensamento plotiniano nos permite pressentir a do universo ideológico em que estamos
imersos há décadas. Ai está a causa do deslizamento da noção de amor. A maioria
das ideologias que abundam em nosso século considera o mundo como um lugar
radicalmente mal, não apenas imperfeito, e, portanto, reformável, senão
irremediavelmente perdido: seja não criada (produto do azar), seja criada por
gênio perverso, mal, quase diabólico. Logo nos damos conta de que o homem no
mundo da ideologia não é uma criatura, não existe acima dele uma providência,
traz o seu sentido em si mesmo, não é responsável por nada nem por ninguém. Ama
ou odeia conforme o objeto satisfaça ou não suas necessidades. Reconhecemos
aqui o mundo do Senhor e do Escravo proposto por Hegel em seu esforço para
explicar o sentido da história. E como no esquema hegeliano a sociedade é um
artifício, tudo na sociedade – educação da juventude, embelezamento da cidade,
concordância das instituições sob o bem comum -, tudo é projeção do medo, do
ódio, da vontade de superar os outros, pois senão serão eles que me matarão. Ao
contrário deste universo monstruoso, a ideologia – hegeliana, rousseauniana,
marxista ou sartriana – nos convida a trabalhar por um porvir no qual todos os
males serão corrigidos por uma utopia crônica, não temporal. Tudo é obscuridade
aqui – no presente -, tudo será luz lá – no porvir -. Aguardando este porvir iluminado, aquele que
busca fazer do mundo atual um lugar habitável, melhor e mais belo, prolonga por
isto mesmo um lugar essencialmente criminoso e insuportável. “Não temos o
direito, escreve Sartre, de criar obras belas neste mundo tão horroroso aonde o
homem explora o homem”. “Não é ainda o mundo em que o ser e o parecer
coincidem”, dizia ERNST BLOCH. Estas palavras emanam de ideólogos aos olhos de
quem o mundo é um monstro, esperando que torne angélico.
O
amor é considerado para mais tarde, para o momento utópico no qual, segundo
BLOCH, Deus surgirá da essência ainda não desenvolvida do homem. Em uma
palavra, o mundo tal qual ele é, se mostra, para o ponto de vista do ideólogo
da utopia, uma negatividade; só existirá propriamente no porvir no qual o homem
será o seu próprio deus.
Por
conseguinte, em oposição ao cristão, o ideólogo desloca o reino do amor e da
permissão para amar à um estado de coisas futuro, e em sua espera fica circunscrito à uma entidade na qual reconhece a força motriz deste porvir: partido político, raça,
Estado totalitário, histórica, evolução bio ou psicológica. O não amar, têm para os outros o que
Sartre chama “a mortal solicitude”, quer dizer, a vontade fazer com que os
seres humanos se conformem, se necessário por meio de massacres, eliminações e
torturas, ao tipo ideal projetado no provir. Compreendemos então as declarações
de IENG SARY, ministro de assuntos exteriores do Camboja, quando diz que se não
houvesse ocorrido a invasão de seu país pelos vietnamitas, a população teria
conhecido a abundancia em 1980. Isso após o extermínio de dois milhões de
cambojanos, seguindo a política anunciada pela equipe dirigente, segundo a qual
bastaria um milhão de comunistas duros e puros para construir a nação!
Ieng
Sary e seus cúmplices amam o povo cambojano? É evidente que o seu amor se
dirige não ao povo tal qual ele é, senão como deveria ser. O ágape e o eros não
têm lugar e a "moral solicitude" mortal que usurpa o seu lugar está repleta de ódio, de
combate (dialética), de violência e de brutalidade erigida em sistema. Isto
está na natureza das coisas, pois o ágape e o eros só são concebíveis pelo
reconhecimento de Deus acima dos homens, pois que é a pessoa boa por essência.
Os lideres do Camboja, assim como os outros ideólogos, se consideram deuses,
oniscientes e onipotentes, mas como, ao fim e ao cabo, são eivados de paixões
humanos, comandam os seus súditos segundo um simulacro de amor, no qual o eros
e o ágape aparecem como caricaturas.
Isto
parece evidente quando nos damos conta de que o amor, em lugar de ser
difundido, compartilhado e multiplicado, é monopólio destes deuses humanos
reinantes. Só se reconhece e se autoriza uma espécie de amor: o do líder por
seus súditos robotizados e o destes por ele. Todas as formas de amor são
abolidas: a dos amantes, dos pais para com seus filhos, dos companheiros de uma
mesma atividade, e também o amor para com as idéias distintas das aprovadas e
proclamadas oficialmente. No Camboja, não há família, nem educação das
crianças, exceto as canções e slogans comunistas; e nos países comunistas, em
geral, não há instituições distintas da vontade do líder e dos vastos projetos
que tem por finalidade a transformação da natureza humana, se necessário pela
escravidão e pelo extermínio.
O
amor se converte em ódio, embora continue chamando-se amor. Se fosse capaz
disso, o líder absorveria a população (pelo menos o que resta após as purgas);
mas como isto é impossível, reduz o seu numero a um mínimo manipulável formado
e educado à sua imagem ideológica.
Esta
atitude se justifica pela suposição de que o mundo, tal e como é, estropiado,
desfigurado pelo egoísmo, a exploração, as paixões e outros males, não é digno
de amor, e as pessoas que dele fazem parte são, elas também, intrinsecamente
perversas; seja por que são o produto de condições corrompidas (a tese de
MARX), seja porque são criaturas do Príncipe da Trevas (a linguagem do
gnosticismo antigo). O exemplo cambojano ilustra isto mais uma vez: os habitantes
que estiveram em contato com o exterior – médicos, professores ou comerciantes
que venderam seus objetos ou seus serviços – foram os primeiros exterminados,
antes que as outras categorias. Este extermínio foi inspirado na “mortal
solicitude”, pois permitia a preservação da “boa semente”. Por conseguinte, não
os indivíduos, mas a humanidade coletivamente é que é o objeto do amor, pelo
menos parte da humanidade acessível ao líder. A morte e a solicitude caminham
juntas: uma parte da humanidade é sacrificada para que os eleitos possam entrar
na luz do amanhecer.
O
amor, tal como o definimos, feito de ágape e de eros, encontra-se decomposto e
degradado. Vimos que o ágape, o amor cristão, é abolido junto com a negação da
criação divina e de tudo que dela decorre, junto com a bondade do real. No
mundo refeito, que é um artifício dos ideólogos, o amor não é ágape, é paixão
dirigida à abolição de todas as outras paixões, começando pelas relações
humanas; estas são substituídas por um supermecanismo, facilmente controlado,
porque carece de trocas e está desprovido de emoções. Este “novo sentimento” –
que não se pode chamar amor – é fundado sobre o ódio à criação e à condição
humana, e encontra sua razão de ser no mundo imaginado do porvir. Mas este
mundo é uma impossibilidade ontológica, cujos habitantes, finalmente seres
humanos, não poderão ser re-estruturados nem pelos bosques do Camboja nem ainda
nos cursos universitários do ocidente. O ideal preconizado não se aproxima do
ideal, o “mundo novo” foge sempre de seus perseguidores ávidos e obstinados. A
sua solicitude, o seu zelo, não é senão, no fundo, ódio por material humano
passivo, incapaz de transformar.
Se o
ágape é abolido e transformado em seu oposto, não se dá o mesmo com o eros. O
ágape significa a relação com Deus; uma ideologia atéia pode pretender durante
certo tempo substituir o amor divino por um projeto gigantesco que impressiona
a população e suscita entusiasmo. Por exemplo, “construir o socialismo”; “unir
o proletariado”, ou um estado de coisas equívoco se estabelece, no qual um
homem reclama para si o estatuto divino e reina em nome de valores cristãos
pervertidos. É o caso de THOMAS MUNZER que combina, no século XVI, o fim
escatológico da história e a revolução terrena. ERNST BLOCH e ROSA LUXEMBURGO encontraram na figura de MUNZER o primeiro revolucionário em que se funde o
elemento evangélico e o elemento marxista.
O
ágape é eminentemente divino, e as falsas tentativas de “humanizá-lo” acabam
sempre em catástrofe. O eros, por outro lado, é eminentemente humano, é a
tensão para os outros, amiúde por intermédio de objetos e de criações do
espírito ou da imaginação. O poema do amante ou um ramo de flores, mas também
uma catedral ou uma sinfonia são mediadores nas relações humanas, o que mostra,
ademais, que o “erotismo” é uma relação empobrecida nas relações em que figura
o eros. É evidente que o espírito do ágape penetrou no eros dos gregos no curso
dos séculos cristãos, de modo que o eros é para nós inconcebível sem que se
converta em erotismo e logo em pornografia. O eros e o ágape figuram nos
melhores momento da Hélade, nos diálogos de PLATÃO especialmente, aonde
ALCEBÍADES e SÓCRATES são atraídos um ao outro pelo eros, mas, da parte deste
último, pelo desejo de beneficiar ao jovem com seus conhecimentos e elevá-los à
sabedoria.
Aonde
a ideologia reina o eros está privado de ágape, se converte em grosseiro e
brutal, não buscando mais que o seu próprio interesse. Em outras palavras, as
relações humanas estão a partir de então marcadas pela só vontade de sobreviver
e a sociabilidade se converte em violência.
As
pessoas ficam submersas na atmosfera sartriana, na qual “o inimigo é o outro” e
sua só presença é interpretada como uma ameaça. Enquanto individuo, o ser
humano se submerge no solipsismo, e enquanto membro da sociedade, a besta
prevalece, o que desperta violência sexual, o medo do vizinho e a luta
permanente para subjugar o outro. Não
é coincidência que no plano da filosofia contemporânea SARTRE não tenha podido
redigir o seu prometido tratado de moral, que NIETZCHE não encontre lugar para
a ética deste lado do super-homem, que HEIDEGGER seja incapaz de vencer a
angustia, que WITTEGENSTEIN exclua toda possibilidade de um discurso racional
sobre a moral. Também não se trata de coincidência se a atividade diária dos
membros do Partido no regime comunista esteja sempre tomada pelo imperativo de
“lutar”: destruir o inimigo de classe; entrar na concorrência para atingir a
cota de produção; combater o que sobrevive da mentalidade burguesa, e assim sucessivamente.
A linguagem totalitária esta salpicada de termos militares, sintoma de que a linguagem
erótica se converteu em uma força negativa: cada um vê no outro um lobo,
segundo a formula de HOBBES aplicada aos seres humanos selvagens que precedem o
contrato social.
É
característica do ideólogo não sentir-se obrigado a amar os seus próximos -
ainda que lhe traga progresso e felicidade -, senão que ama apenas abstrações
tal como o Partido, e a seu ver as denuncias contra pais e amigos são
consideradas uma virtude.
ORWELL tinha uma intuição segura da erótica nas
sociedades dominadas pela ideologia: os amantes praticam o amor
desesperadamente em uma casa pequena, que reputam escondida de toda vigilância,
enquanto que tudo o que lhes rodeia é frio, indiferente, hostil, sendo o
próprio amor considerado como um ato anti-social por excelência.
Em
um regime ideológico não existe o direito a uma vida privada, a ter
sentimentos, a formar relações de afeto, pois cada instante, cada pensamento ou
emoção, fora da vigilância do Partido e não orientado para o “futuro
resplandecente”, é suspeitoso, por constituir uma partícula incalculável, a
partir da qual poderia surgir uma partícula da liberdade.
Tomando,
talvez, a novela de GEORGE ORWELL como modelo, o russo ALEXANDER ZINOVIEV concretiza um mundo sem amor a partir de suas experiências no seio da
hierarquia política e acadêmica (as duas coincidem) da sociedade soviética. A
diferença entre ZINOVIEV e os outros escritores da dissidência, é que em sua
ótica esta sociedade é uma sociedade
“natural”, no sentido de que o amor não está presente de nenhuma forma: o
princípio político que domina é o bellum
omnium contra omnes de HOBBES. Segundo o autor, tal o modelo de sociedade
que seria a norma entre os homens se o ser humano fosse apenas o produto da
planificação social e se existisse em um meio no qual as ameaças e os perigos
de todos os instantes (ainda as ameaças e perigos institucionalizados)
estivessem suspensos sobre suas cabeças. O escritor polaco ADAM MICHNIT fala a
este respeito da “sociedade sovietizada”, aonde o significado das palavras foi
destruído, e na qual os homens foram proibidos de fomentar reflexões não
oficiais em relação a sua vida pública ou privada. O talento do novelista
consegue criar o contraste entre a sociedade normal e a sociedade ideológica:
em 1984 resta um espaço tolerado aos velhos dissidentes que jogam xadrez todas
as tardes: no Porvir radiante, de
ZINOVIEV, existe, além das intrigas do Partido e das traições dos amigos, uma
velha roupeira indiferente à luta feroz para a sobrevivência ideológica, pois
havia reduzido sua existência ao estritamente mínimo. Eis aqui um comentário
terrível sobre um regime que supostamente devia trazer a felicidade a uma
sociedade ódios de classe, mas na qual somente os marginalizados são capazes de
reservar-se um metro quadrado de liberdade individual. No entanto, aqui também
o amor é uma quantidade desconhecida e, de todos os modos, ilegal.
O
que se pode aprender sobre o amor a partir do tema em contraponto do ódio como mortal solicitude? Primeiro,
que a combinação do eros e do ágape compreende a totalidade do amor, as
dimensões horizontal e vertical. Em segundo lugar, nos damos conta de que o eros,
enquanto tal, amor exclusivamente humano, não é suficiente, pois se converte
com facilidade em agressividade, violência e exploração egoísta do outro. O
dinamismo erótico, pelo qual o sujeito tende para o mundo, tem necessidade de
ser moralmente guiado para livrar-se do ego.
Neste sentido deveria-se ampliar o dito aristotélico: o animal político deve
ser “animal moral”, igualmente, para que possa inserir-se na sociedade de seus
semelhantes, quer dizer, para que compreenda a necessidade de restringir o
dinamismo, incontrolável por natureza, de seu eros.
Nossa
terceira consideração em relação ao amor refere-se à sua interpretação pelos
filósofos desde KANT. Com exceção de alguns raros pensadores modernos, a
tendência geral tendo sido acentuar a dimensão social e política do amor, o que
caricaturado no credo de Kwameh Nkhrumah, primeiro Presidente de Gana: “Basta
conquistar o reino político, o resto nos será dado por acréscimo”, versão
pervertida da mensagem de Cristo.
Esta
politização do amor conduz logicamente à noção de “solicitude mortal” na qual o
amor é absorvido pela política, e esta é concebida como uma ferocidade sem
limites. Mas tarde, os existencialistas se rebelaram contra esta noção
empobrecida do amor, mas KIERKGAARD até MARTIN BUBER não tiveram êxito: aquele
foi incapaz de enraizar o ágape na inteligência divina, enquanto BUBER não
deixou lugar à erótica. A relação entre o
tu e o eu esquece a função
mediadora dos objetos ente Deus e o homem, limitando assim o amor aos raros instantes
de uma elevação quase mística. Voltamos a PLOTINO e sua negação de um mundo
real e glorioso em si, que tem sua parte da abundancia divina.
KIERKEGAARD escreveu em algum lugar: “Do mesmo modo que um lago tranqüilo cujas águas estão
nutridas por fontes invisíveis, o amor do homem tem suas raízes no amor de
Deus. Se não houvesse fontes nas profundidades, se Deus não fosse amor, nem o
pequeno lago nem o amor do homem existiriam”. O pensador dinamarquês não tinha
o costume de por sobre o papel suas idéias banais. Esta passagem evoca a idéia
de que deve-se compreender que o amor é algo mais que o sentimento recíproco
entre os homens, e que deve-se incluir o principio pelo qual existe uma
solidão. Isso não é hoje evidente imediatamente, pois nossos contemporâneos
vêem como princípio da sociedade a luta de classes, a militância política, os
conflitos e as revoluções. Ninguém pensa em negar tais fatos, mas não por isso
é menos verdadeiro que a sociedade,
enquanto tal, se funda sobre a necessidade racional que os seres humanos têm de
aproximar-se entre si, de ser solidários, de desenvolver-se no seio da
comunidade. Recusamos a tese positivista segundo a qual os indivíduos são átomos
que se reúnem em grandes agregações, do mesmo modo que se unem as partículas em
conjuntos maiores. Entres os seres humanos até mesmo as forças que os unem de
forma mecânica são conscientes, queridas e
penetradas de emoção. Em outros termos, a sociedade, as instituições do
Estado, fundam-se sobre a razão, sobre a justiça e sobre a caridade. Ao fim: sobre sua origem comum.
Em
nossos dias, sobretudo, percebemos esta verdade no espelho deformante dos
regimes totalitários. Em ultima analise é o amor que prescreve aos regimes não
totalitários o dever de trabalhar para a conciliação entre o completo
desenvolvimento pessoa e a coexistência comunitária, porque nestes regimes
sobrevive sempre a idéia de que o individuo e a sociedade são criação divina.
Ademais,
a sociedade não totalitária reconhece o individuo como valor básico e a quem o
Estado deve servir, pois esta é sua razão de ser.
Finalmente,
a sociedade não totalitária tem como evidente que o passado e o presente estão
ligados organicamente – pela via da tradição, da memória comum, da continuidade
das leis – e que o presente não deve ser sacrificado por um porvir sempre
problemático; o passado, igualmente, não deve ser reescrito segundo as regras
subversivas do Newspeak orweliano em
nome de um suposto imperativo da atualidade.
Uma
sociedade que não observa estes princípios está fundada sobre o ódio ao homem,
à realidade e ao tempo. Os lideres ideólogos manipulam estas três coisas. O
resultado é a mentira denunciada sem cessar por alguns críticos: a mentira em
relação à natureza humana, à estrutura do ser e à história.
Os
objetivos últimos dos que desfiguram a imagem do homem concebido no amor, é o
de mentir sobre a criação.
***
Fonte: Revista Verbo (Madri), n. 185-186, 1980, pp. 555-565.