sexta-feira, 14 de março de 2014

A invasão dos bárbaros no Templo




RAFAEL GAMBRA CIUDAD
(Madri, 21 de julho de 1920 - 13 de janeiro de 2004)

 

“Em nossos dias podemos ver sacerdotes e guardiões do Templo santo se unir à turba dos incendiários da Cidade e dedicar-se de forma desenfreada na demolição do patrimônio sagrado que eles receberam como depósito, como função. E assim os vemos hoje se empenharem na ‘desmistificação’ da fé, na ‘dessacralização’ do culto e outras iniciativas contraditórias, ao mesmo tempo em que definem a religião e a Igreja como ‘um serviço à Humanidade’. A promoção de uma vaga fraternidade humana, da paz, do desenvolvimento econômico, do bem-estar social e da igualdade são os objetivos explícitos de uma religião apenas de nome e de modo vergonhoso. À imagem ideal do monge macilento e ascético substituiu-se como paradigma a do clérigo ‘eficaz’ e ativo, com grossa maleta embaixo do braço. Mas, se a primazia da ação encerra a Cidade humana em um círculo sem saída em cujo centro sorri o Diabo do Fausto, quando essa mesma primazia é aplicada ao Templo o efeito é ainda maior: se o esvazia de sua substância mesma e realidade. O Templo já não é lugar de contemplação senão de ruído e de subversão, simplesmente porque já não é templo. Assim como a chamada sociedade de consumo e do transporte fácil origina uma atmosfera irrespirável, assim a corrupção do Templo torna impossível a oração pessoal, que é como a respiração da alma. A ruína total e definitiva da antiga Roma se resumiu sempre ‘na entrada dos bárbaros no Capitólio’, quer dizer, no templo supremo da Urbe. Nossa civilização não perece por bárbaros e estrangeiros, senão que produz ou destila de si mesma seus próprios bárbaros. Em nossos dias se tem produzido a invasão destes bárbaros imanentes no Capitólio ou santuário de nossa Cidade, que é a Igreja Católica. Por isso não se trata de uma destruição exterior, a sangue e fogo, senão de uma autodemolição obstinada, silenciosa”.

Fonte: Revista Verbo, “Sentido cristiano de la accion”, ns. 119-120, 1973, pp. 961-962.

terça-feira, 11 de março de 2014

ELEGÍA A LA TRADICIÓN DE ESPAÑA

JOSÉ MARÍA PEMÁN (1898-1981)


Elegía a la tradición de España

Me duele España en mí, como si fuera
carne en mi carne: siento
como el temblor de un viejo tronco al viento
o el desasirse de una enredadera.

Ramas tronchadas de una primavera,
siento en mí los sentires más amados
como Cristos manchados
de sangre y de saliva:
¡y me duele en el alma, en carne viva,
la mella de los siglos arrancados!

Yo no soy luz que brilla
pasajera entre nubes, ni lamento
perdido en soledad, ni hoja amarilla
danzarina de otoño sobre el viento:

no es una pluma en el azar mi vida
ni soy un punto, solo, sin medida
ni dimensión, que encierra
en sí mismo su ser todo agotado.
Todo en mí, carne y luz, lo han amasado
los muertos y la tierra:
las dos roanos fecundas del pasado.

Yo soy un alma amiga
de otras almas que fueron mis iguales:
rojo coral en banco de corales,
gota de un mar y grano de una espiga.
Mis ansias y sentires terrenales
no son silvestres rosas
nacidas, sin semillas, en mi pecho...
¡Yo soy lo que me han hecho
los siglos y las cosas!


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A SOBERANIA DO POVO É SATÂNICA

MARCEL DE LA BIGNE DE VILLENEUVE 
(1889-1958)
"Satan dans la Cité"

"A guerra é sem trégua e sem piedade entre a Revolução e os que permanecem fiéis a Deus sobre a terra, porque a Revolução é uma tentativa de organização do mundo sem Deus e contra Deus. É o mais formidável dos erros. É a heresia total". (Pe. Charles Maignen. "La souveraineté du Peuple est une hérésie")


Em relação ao ponto que tocamos, a heresia é flagrante e fora de dúvida. Pois a soberania do povo é incompatível com o dogma do pecado original e da mancha primitiva do homem. Se, com efeito, o mal existe no homem desde o seu nascimento, se o homem traz em si más tendências que não podem ser combatidas nem freadas senão pela graça e uma autoridade esclarecida, como ensina o cristianismo, é absurdo proclamar o homem incondicionalmente soberano e independente. É o que proclamam em alta voz Jean Jacques Rousseau e todos os filósofos ou doutrinadores da revolução. É o que, seguindo seus passos, reconhecia faz pouco tempo Edouard Herriot, como postulado fundamental: “A democracia tem por fundamento um grande ato de fé na bondade da ‘natureza humana’”. 
Contra o dogma do pecado original, a soberania do povo erige, pois, o da bondade e o da retidão naturais, da “imaculada concepção” do homem, segundo a célebre expressão de Blanc de Saint-Bonnet.
A soberania do povo permite que Lúcifer se levante novamente contra a ordem divina e satisfaça ao mesmo tempo seu espírito de vingança e sua eterna malícia. Com a reivindicação da “imaculada concepção” do homem visa descontar a decadência que seguiu a falta de nossos primeiros pais. E o Tentador evidentemente experimenta uma sutil satisfação ao renovar para nós a queda primitiva, fingindo querer nos livrar de suas conseqüências e ao fazer cada um de nós tropeçar como nosso primeiro pai e pelo mesmo motivo. Pois a causa e o estimulo da rebelião original foi a soberba: “Sereis como deuses!” A afirmação da soberania individual e popular procede da mesma tendência; está marcada intrinsecamente pelo mesmo vício; não se poderia admiti-la nem tampouco praticá-la sem dar provas de uma vaidade ao mesmo tempo criminosa e cômica e de uma insurreição deliberada contra a ordem das coisas tal como foi estabelecida por Deus em castigo a falta e, por conseqüência, sem incorrer em uma nova pena.


A soberania do povo é satânica enquanto pretende expulsar Deus da sociedade e proclamar contra Ele os falsos Direitos do Homem, exatamente como Lúcifer pretendeu substituir a Deus no Céu e proclamar contra Ele os falsos direitos dos anjos rebeldes.
É satânica enquanto nega explicita e insidiosamente os dogmas essenciais da fé cristã: o da queda original e da mancha radical do homem e o de que toda autoridade reconhece sua fonte exclusiva, sua regra e seus limites em Deus.
É satânica, por conseguinte, enquanto baseia toda organização política e social na insubordinação e na soberba e faz deste pecado, pai de todos os vícios, a mola propulsora de toda atividade das nações.

É a heresia de nossa tempo, dizia o Cardeal Gousset, que se fez um bom profeta. Será tão daninha e tão difícil de extirpar como o jansenismo. Será mais ainda, pois ultrapassa imensamente em malícia e extensão.

***
Fonte: Satan en la Ciudad. Buenos Aires: Editorial Nuevo Orden, 1965, pp. 86-89.
Tradução: Fernando Rodrigues Batista

domingo, 2 de fevereiro de 2014

UM POEMA DE CHESTERTON DEDICADO A VIRGEM MARIA


GILBERT KEITH CHESTERTON
(29 de maio de 1874 – 14 de junho de 1936)


A Virgem Maria

Nossa Senhora partiu para um estranho país
Onde é coroada Rainha.
Não era preciso que A retivessem, ou que A interrogassem,
Mas que A vissem.
E ficaram eles deslumbrados com a Sua beleza excelsa,
Exatamente como nós.
Nesse estranho país, Nossa Senhora traz uma coroa
- A que Ele Lhe deu;
Mas Ela não Se esqueceu de dizer aos Seus companheiros
Que A chamassem em seu auxílio.
E se ouvirmos chamar um homem por Seu nome,
Pode este levantar-se e bradar às portas da morte.

***

Fonte: Gilbert Keith Chesterton. Regina Angelorum, segundo Collected Poems, 1935. Citado no livro “O primeiro amor do mundo” de Fulton Sheen.



LIÇÕES DE SAINT-EXUPÉRY

 
ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
(29 de julho de 1900 – 31 de julho de 1944)

SAINT-EXUPÉRY (1900-1944), no dizer de Michel de Saint-Pierre, pertence à linhagem dos Maurras, Barrès, Bernanos, Montherlant, Drieu La Rochelle, Brasilach, Jacques Ploncard d´Assac – poderíamos acrescentar os nomes de Gustave Thibon e Marcel de Corte -; homens que souberam levantar a voz em defesa da condição humana, ameaçada pela tecnocracia totalitária, e o fizeram anunciando galhardamente verdades das mais necessárias para o homem do nosso tempo. Note-se, porém, que a defesa da condição humana de que se fala em tudo destoa do "humanismo maçônico" entoado pela ONU e pelos marxismos de todos os matizes e isto se notará facilmente em alguns excertos extraídos de sua obra póstuma: “Cidadela”  (Tradução de Ruy Belo, Lisboa: Aster). 

“- Quero que amem as águas da fonte. E a superfície ininterrupta da cevada verde, recozida na crepitação do verão. Quarto que glorifiquem o regresso das estações. Quero que se alimentem, semelhantes a frutos que se realizam, de silencio e vagar. Quero que chorem muito por muito tempo os seus lutos, que prestem demoradas homenagens aos mortos, porque a herança passa lentamente de geração para geração. (...) Deus faz-te nascer, faz-te crescer, enche-te sucessivamente de desejos, de pesares, de alegrias e de sofrimentos, de cóleras e de perdões, até que te faz ingressar de novo n’Êle. E, no entanto, tu nem és aquela estudante, nem aquele esposo, nem aquela criança, nem aquele velho. Tu é aquele que se realiza”. (I, p. 17)

***
“Quando nenhum elemento estável liga as gerações umas às outras, a troca deixa de ser possível e o tempo passa a correr tão inútil como a areia de uma ampulheta. (...) Porque eu respeito em primeiro lugar o que dura mais do que os homens (...) Mas não espero nada do homem, se ele só trabalhar para a sua própria vida e não para a sua eternidade" (VI, pp. 32).

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“(...) a qualidade da civilização do meu império não repousa sobre a qualidade dos alimentos, mas sim sobre a das exigências e sobre o fervor do trabalho. Não é feita da posse, mas sim da dádiva. Civilizado, para mim, é aquele artesão que se recria no objeto e ao mesmo tempo passou a ser eterno, pois o abandonou o medo de morrer. Civilizado também aquele que combate e se troca pelo império. Mas estoutro embrulha-se sem beneficio no luxo comprado nas casas dos mercadores. (...) Sei dessas raças abastardadas que deixaram de escrever os poemas e apenas os lêem, que deixaram de cultivar o solo e passaram a apoiar-se nos escravos. É contra eles que as areais do Sul prepararam eternamente, na sua miséria criadora, as tribos ardentes que hão de subir até aqui, para a conquista das provisões mortas. Não amo os sedentários do coração. Aqueles que não trocam nada jamais se tornam coisa alguma. E a vida não terá servido para os amadurecer. E o tempo corre por eles como o punhado de areia, e perde-os. Que hei de remeter a Deus em nome deles? Quando deixaram desabar o deposito ainda por encher, é que pude avaliar bem a sua miséria. (...) A mágoa é sempre feita do tempo que corre e não formou o seu fruto” (VI, pp. 35).

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“Porque eu apenas me tenho preocupado dos direitos de Deus através do homem. E a verdade é que sempre concebi o mendigo como embaixador de Deus, sem por isso lhe dar demasiada importância. Mas Deus me livre de reconhecer os direitos do mendigo, da úlcera e fealdade do mendigo, embora ele e os companheiros as tratem como ídolos. (...) Lembro-me de ver um leproso rindo gordurosamente e limpando um dos olhos com um trapo sórdido. Era acima de tudo vulgar e estava todo satisfeito com sua baixeza. Meu pai decidiu o incêndio. E aquela turba, que tinha em muito as espeluncas bolorentas, começou a fermentar, reclamando em nome dos seus direitos. O direito à lepra no bafio. – Isto é natural – disse meu pai voltando-se para mim – porque, segundo eles, a justiça traduz-se em perpetuar aquilo que existe. E eles gritavam, apoiados no direito à podridão. – Se tu deixas que se multipliquem os hipócritas – continuou meu pai -, nessa altura nascem os direitos dos hipócritas. Os quais são evidentes. E nascerão cantores para os celebrarem” (VIII, p. 39).

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“- Obriga-os a construir juntos uma torre e vais ver que passam a ser como irmãos. Mas se queres que se odeiem uns aos outros, arroja-lhes um punhado de trigo. (...) Uma civilização repousa sobre o que se exige dos homens, não sobre o que se lhes fornece. (...) – Homem – dizia meu pai – é em primeiro lugar aquele que cria. E só são seus irmãos os homens que colaboram. E só se pode dizer que vivem aqueles que não encontraram a paz nas provisões arrecadadas. (...) Não queiras inventar um império onde tudo seja perfeito. (...) Inventa um império onde tudo seja simplesmente fervoroso”. (IX, PP. 43-44)

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“Só o sentido das coisas conta para o homem. (...) - Ora vê – dizia-me – como eles começam a tornar-se gado e a apodrecer docemente... não na sua carne, mas nos seus corações. Porque tudo para eles perdia o significado” (XI, pp. 49-50).

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“Em nome da justiça, cometeram assassínios sem conta. A justiça deles era principalmente igualdade. E quem quer que se distinguisse fosse no que fosse via-se esmagado pelo número. - A massa – dizia-me meu pai – odeia a imagem do homem, porque a massa é incoerente, puxa em todos os sentidos ao mesmo tempo e anula o esforço criador. É certo que o homem não deve esmagar o rebanho. Mas não procures aí a escravatura: essa manifesta-se quando o rebanho esmaga o homem” (XI, p. 51).

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“E eu me lembrava das palavras de meu pai: ‘se quiseres que eles sejam irmãos, obriga-os a construir uma torre. Mas, se quiseres que se odeiem, arroje-lhes um punhado de trigo’. Contatamos que eles iam perdendo a pouco e pouco o uso das palavras, de que já não precisavam. E meu pai passeava-me por entre essas faces ausentes, que olhavam para nós sem nos conhecerem, embrutecidas e vazias. Já só emitiam essas rosnadelas vagas, que reclamam o alimento. Vegetavam, sem magoas, sem desejos, nem ódio, nem amor. Em breve, deixaram mesmo de se lavar e nem sequer matavam os bichos, que assim foram prosperando. Começaram a aparecer os cancros e as ulceras. O acampamento começou a empestar o ar. Meu pai tinha medo da peste. E, sem dúvida, também pensava na condição do homem.
- Estou disposto a acordar o arcanjo que dorme, abafado, debaixo do esterco. Porque não são eles que eu respeito, mas é Deus através deles” (XI, pp. 51-52).

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“É uma coisa estranha: os homens perdem o essencial – fazia notar meu pai – e não dão por isto (...). E o homem, que ignora o desastre, não chora a sua plenitude murcha. (...) É por isso que convém manter permanentemente acordado no homem aquilo que é grande, e por isso também importa convertê-lo à sua própria grandeza. Porque o alimento essencial não vem das coisas, mas sim do laço que liga as coisas” (XII, pp. 52-53).

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“O cedro, quando a borrasca lhe quebra os ramos e o vento de areia o enrijece e ele cede ao deserto, não é que a areia se tenha tornado mais forte, foi ele que renunciou e abriu a porta aos bárbaros” (XIII p. 55).

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“Perguntava a mim próprio, no silencio do meu amor: ‘Por que é que eles não querem morrer?’ E pedia uma resposta à minha sabedoria. Não se morrer por carneiros, nem por cabras, nem por lares, nem por montanhas. Os objetos subsistem, sem necessidade de lhes sacrificar seja o que for. Mas já se morrer para salvar o invisível laço que os liga uns aos outros e os transforme em propriedade, em império, em rosto reconhecido e familiar. Por essa unidade já uma pessoa se troca, porque morrer também é construí-la. A morte paga, graças ao amor. E aquele que trocou a pouco e pouco a vida pela obra bem feita e mais duradoura do que a vida, pelo templo que caminha de século em século não hesita morrer se os seus olhos são capazes de distinguir o palácio da confusão dos materiais, e se anda deslumbrado por aquela magnificência e deseja fundir-se nela. Deixa-se receber e envolver no amor de uma realidade que é maior do que ele” (XIII, pp. 55-56).

***

“Aí está - dizia eu - a verdade do homem. Ele só existe para a sua alma. À testa da minha cidade, porei poetas e padres. E eles farão desabrochar o coração dos homens” (XXI, p. 80).

A ESPERANÇA

GUSTAVO CORÇÃO
(17 de dezembro de 1896 – 6 de julho de 1978)

Meditemos diante de Deus, e demoremo-nos na consideração de Seus dons.
Pelo leite e pelo sangue da Sagrada Doutrina, sabemos que para vivermos cristãmente, isto é, para nos entregarmos totalmente aos trabalhos do Espírito, que opera em nós a modelagem do divino exemplar, para assim podermos voltar ao Pai, precisamos possuir órgãos, forças, faculdades espirituais que só Deus pode dar, e sem as quais todos os nossos esforços se perderiam em disparates e confusão. 
Sabemos que esses dons e virtudes infusas que nos vêm de Deus são três teologais: Fé, Esperança e Caridade, e quatro morais: prudência, justiça, força e temperança. Sabemos que a essas sete virtudes a Sagrada Doutrina acrescenta os sete Dons do Espírito Santo, e que a esses dons faz corresponder às bem-aventuranças e os frutos. E é com esse equipamento que lutaremos para chegar ao Reino de Deus, que já está entre nós germinalmente, e que desabrochará um dia na Glória.
No capítulo XIII da 1ª Epístola aos Coríntios, São Paulo nos fala das três virtudes teologais nestes termos que serão repetidos pela Igreja até o fim do mundo: “Agora vemos por um espelho, em sinais e enigmas, mas depois veremos face a face; no presente conheço apenas parcialmente, mas um dia conhecerei como sou conhecido. Agora possuímos estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior é a caridade”.
 A fé e a esperança passarão, porque são virtudes de peregrino, mas a caridade não passará, porque já é, aqui e agora, o mesmo santo amor. Há, portanto, entre a caridade e as outras duas virtudes teologais uma essencial diferença de modo: enquanto aquelas passam por ser instrumentos da obscura peregrinação, a caridade é idêntica, homogênea e constante, no exílio e na pátria. Lá será mais perfeita e mais livre, mas será a continuação da mesma virtude que agora nos polariza a vida pela vontade de Deus.
Há, porém, entre a Fé e a Esperança, ambas peregrinas, uma diferença na maneira de passar ou de transmutar-se. Toda a tradição católica ensina que a Fé é uma visão, um lumen fidei, é, seminalmente, o mesmo lumen gloriæ com que, no céu, veremos Deus face a face. A visão no céu é a mais refulgente das evidências, e por isso independe absolutamente do ato de confiança. Nesse sentido difere da Fé e até se pode dizer que se opõe ao que há de obscuro e enigmático nos sinais e no ato de confiança da Fé, mas as verdades de Deus, vistas pela fé em sinais e enigmas, ou vistos face a face, são as mesmas. E nisto pode-se dizer que algo da fé não passará. Ao contrário, é mais desconcertante e mais provocante, em sua descontinuidade, o ato de esperança em relação à beatitude dos bens finalmente possuídos em toda a plenitude.
Enquanto o ato de fé, na sua obscuridade, consiste desde já numa antevisão, num lampejo do mesmo lumen gloriæ, o ato de esperança, ao contrário, se choca com todos os desejos de felicidade deste mundo. Os mais legítimos, os mais honestos desejos de felicidade, antes mesmo de se tornarem crispações obsessivas de alma humana, já contrariam a esperança teologal que só se nutre de renúncias. É verdade que o mesmo apóstolo nos disse que devemos viver alegres na esperança, mas logo acrescenta: e pacientes na tribulação. “Spe gaudentes: in tribulatione patientes”. (Rm 12, 12).
É fácil dizer convencionalmente que o cristão deve ser alegre, mas essa alegria convencional que se propõe como atitude cristã antes de atendidas as primeiras exigências da santidade são um disfarce da alma, ou um jogo de palavras, que em nada se parece com a alegria na esperança ensinada pelo Apóstolo. Todos os autores espirituais da grande tradição católica sempre ensinaram que à virtude teologal da esperança se prende o dom do temor, e o dom da ciência com que a alma vê o nada das criaturas diante do Ser pleno de Deus; e a bem-aventurança que na mesma linha se põe é a da das lágrimas. “Bem-aventurados os que choram”. Este é o enunciado que Nosso Senhor nos deixou da alegria na esperança. Felizes os que choram, sim, mas felizes realmente são os que choram na esperança. Porque, como em todas as coisas deste mundo, há lágrimas que vêm da carne do espírito da esperança. Por onde se vê que o alegrar-se na esperança traduz-se por chorar na esperança, e por dizer com a coragem dos santos: “muero porque no muero”. 
Insistimos neste ponto: das três virtudes teologais, a mais contrastante com os anseios naturais da vida humana, a mais transformadora de critérios e valores, é, sem dúvida, a peregrina virtude da Esperança, que Péguy e Brasilliach, dois poetas, dois heróis, que os mandarins da gauche catholique rejeitaram, viram com os traços de uma menina pobre, espécie de gata borralheira das virtudes teologais.
No mundo moderno, a feroz avidez de bens terrestres, a polifórmica gulodice dos olhos, dos ouvidos, da boca e do sexo ainda procura uma forma de fé adulterada, ainda nos engana com uma hedionda caricatura da caridade, mas a divina Esperança é frontalmente rejeitada. Toda a crise do mundo católico secularizado, temporalizado, agachado, ávido de terra, de pó, de palha e de carne, é principalmente uma febre de desesperança. Os chamados progressistas querem aqui e agora o pagamento das promessas, e ameaçam levar à falência a Igreja, má pagadora neste mundo. Querem o resgate dos títulos de felicidade terrestre, e não o das almas.
                                                                                                   
07-10-1972

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A CRUZ: NÃO HÁ OUTRO ESCAPE!

                                         Por: FREI BENVINDO DESTAFANI O. F. M.



O século desvairado julga o Crucificado, um Deus flagelado, coroado de espinhos, ensangüentado, ferido, coberto de ignomínia, um símbolo absurdo de triste, de sofrimento e de dor, o cumulo da loucura.
Entretanto a cruz é o sinal que se encontra nos lares bem formados, nas torres das igrejas, nos túmulos cristãos. A cruz é o alivio dos desventurados e a esperança dos moribundos. A cruz enternece na alegria, consola no abatimento, é penhor de vida na sombra da morte. O mundo não entende a loucura da cruz de que fala o Apostolo São Paulo.
- “Nos stulti propter Christum”: “Somos loucos de amor por Cristo”.
Humilhar-se, abater-se, perdoar, renunciar aos gozos, repudiar a avareza, a ambição, a gloria, o furor do bem-estar, eis a loucura da cruz!
A sacrossanta cruz reitera todas as imolações do Homem-Deus, desde o primeiro vagido do presépio até o derradeiro gemido do Calvário, imolações essas espontâneas, conforme predisse o profeta:
- “Oblatus est quia ipse voluit:” “Voluntariamente Jesus se sacrificou”.
A cruz é obra estupenda de Deus. É o pólo de toda criação. É a síntese do amor para quem algumas horas são longos anos! É a santa impaciência do amor!
O mundo sem a bendita cruz seria insuportável; a vida, sem esperança; as desgraças, sem consolação.
Na cruz, o amor é sua própria vítima, seu próprio altar, seu próprio pontífice. Na cruz está a gloria da matéria, a apoteose da castidade. Porque a Justiça divina viu no Crucificado a responsabilidade da pena, mas não a malicia da falta.
A humanidade, tão inclinada pela prevaricação adâmica aos furores da impureza e as orgias da concupiscência, precisa do salutar remédio da santa cruz.
Porquanto, o povo que não presa a cruz, que zomba do Crucificado, é um povo morto, perderá sua liberdade, como aconteceu com o antigo império romano: Roma come, bebe, diverte-se e morre!
Não se encontra o Redentor senão com a cruz.
Por conseguinte, todos a quem não satisfaz a realidade presente; todos que tem um ideal; todos que possuem fome e sede de justiça deverão amar o sinal da nossa salvação.
Não se pode amar o divino Libertador sem amar também a sua cruz. Muitos querem o reino celestial, mas não querem ir para lá pelo caminho da cruz.
Muitos querem as consolações de Nosso Senhor, mas detestam seus trabalhos, suas fadigas, seus padecimentos.
Muitos desejam o doce e belo Tabor, mas aborrecem o espinhoso e acerbo Calvário. Muitos almejam ser companheiros de suas alegrias, mas poucos preferem compartilhar de suas amarguras.
Ninguém quer a cruz de Cristo ou, se a deseja, há de ser conforme a seus gostos, a seus caprichos, a suas inclinações, talha a seu bel-prazer.
Todavia ninguém poderá viver sem cruzes. E face da universalidade da cruz, há somente um dilema. Ou carregá-la com paciência e resignação e ser amigo de Jesus, ou detestá-la e ser inimigo de Jesus conforme Ele mesmo afirmou:
- “Quem não está comigo, será contra mim!”
Não há outro escape!

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Fonte: Ao entardecer, São Paulo: Edições Paulinas, 1957, p. 178-180.