GUSTAVO CORÇÃO
(17 de dezembro de
1896 – 6 de julho de 1978)
Meditemos
diante de Deus, e demoremo-nos na consideração de Seus dons.
Pelo
leite e pelo sangue da Sagrada Doutrina, sabemos que para vivermos cristãmente,
isto é, para nos entregarmos totalmente aos trabalhos do Espírito, que opera em
nós a modelagem do divino exemplar, para assim podermos voltar ao Pai,
precisamos possuir órgãos, forças, faculdades espirituais que só Deus pode dar,
e sem as quais todos os nossos esforços se perderiam em disparates e confusão.
Sabemos
que esses dons e virtudes infusas que nos vêm de Deus são três teologais: Fé,
Esperança e Caridade, e quatro morais: prudência, justiça, força e temperança.
Sabemos que a essas sete virtudes a Sagrada Doutrina acrescenta os sete Dons do
Espírito Santo, e que a esses dons faz corresponder às bem-aventuranças e os
frutos. E é com esse equipamento que lutaremos para chegar ao Reino de Deus,
que já está entre nós germinalmente, e que desabrochará um dia na Glória.
No
capítulo XIII da 1ª Epístola aos Coríntios, São Paulo nos fala das três
virtudes teologais nestes termos que serão repetidos pela Igreja até o fim do
mundo: “Agora vemos por um espelho, em sinais e enigmas, mas depois veremos
face a face; no presente conheço apenas parcialmente, mas um dia conhecerei
como sou conhecido. Agora possuímos estas três coisas: a fé, a esperança e a
caridade; mas a maior é a caridade”.
A fé e a esperança passarão, porque são
virtudes de peregrino, mas a caridade não passará, porque já é, aqui e agora, o
mesmo santo amor. Há, portanto, entre a caridade e as outras duas virtudes
teologais uma essencial diferença de modo: enquanto aquelas passam por ser
instrumentos da obscura peregrinação, a caridade é idêntica, homogênea e
constante, no exílio e na pátria. Lá será mais perfeita e mais livre, mas será
a continuação da mesma virtude que agora nos polariza a vida pela vontade de
Deus.
Há,
porém, entre a Fé e a Esperança, ambas peregrinas, uma diferença na maneira de
passar ou de transmutar-se. Toda a tradição católica ensina que a Fé é uma
visão, um lumen fidei, é, seminalmente, o mesmo lumen gloriæ com que, no céu,
veremos Deus face a face. A visão no céu é a mais refulgente das evidências, e
por isso independe absolutamente do ato de confiança. Nesse sentido difere da
Fé e até se pode dizer que se opõe ao que há de obscuro e enigmático nos sinais
e no ato de confiança da Fé, mas as verdades de Deus, vistas pela fé em sinais
e enigmas, ou vistos face a face, são as mesmas. E nisto pode-se dizer que algo
da fé não passará. Ao contrário, é mais desconcertante e mais provocante, em
sua descontinuidade, o ato de esperança em relação à beatitude dos bens
finalmente possuídos em toda a plenitude.
Enquanto
o ato de fé, na sua obscuridade, consiste desde já numa antevisão, num lampejo
do mesmo lumen gloriæ, o ato de esperança, ao contrário, se choca com todos os
desejos de felicidade deste mundo. Os mais legítimos, os mais honestos desejos
de felicidade, antes mesmo de se tornarem crispações obsessivas de alma humana,
já contrariam a esperança teologal que só se nutre de renúncias. É verdade que
o mesmo apóstolo nos disse que devemos viver alegres na esperança, mas logo
acrescenta: e pacientes na tribulação. “Spe gaudentes: in tribulatione
patientes”. (Rm 12, 12).
É
fácil dizer convencionalmente que o cristão deve ser alegre, mas essa alegria
convencional que se propõe como atitude cristã antes de atendidas as primeiras
exigências da santidade são um disfarce da alma, ou um jogo de palavras, que em
nada se parece com a alegria na esperança ensinada pelo Apóstolo. Todos os
autores espirituais da grande tradição católica sempre ensinaram que à virtude
teologal da esperança se prende o dom do temor, e o dom da ciência com que a
alma vê o nada das criaturas diante do Ser pleno de Deus; e a bem-aventurança
que na mesma linha se põe é a da das lágrimas. “Bem-aventurados os que choram”.
Este é o enunciado que Nosso Senhor nos deixou da alegria na esperança. Felizes
os que choram, sim, mas felizes realmente são os que choram na esperança.
Porque, como em todas as coisas deste mundo, há lágrimas que vêm da carne do
espírito da esperança. Por onde se vê que o alegrar-se na esperança traduz-se
por chorar na esperança, e por dizer com a coragem dos santos: “muero porque no
muero”.
Insistimos
neste ponto: das três virtudes teologais, a mais contrastante com os anseios
naturais da vida humana, a mais transformadora de critérios e valores, é, sem
dúvida, a peregrina virtude da Esperança, que Péguy e Brasilliach, dois poetas,
dois heróis, que os mandarins da gauche catholique rejeitaram, viram com os
traços de uma menina pobre, espécie de gata borralheira das virtudes teologais.
No
mundo moderno, a feroz avidez de bens terrestres, a polifórmica gulodice dos
olhos, dos ouvidos, da boca e do sexo ainda procura uma forma de fé adulterada,
ainda nos engana com uma hedionda caricatura da caridade, mas a divina
Esperança é frontalmente rejeitada. Toda a crise do mundo católico
secularizado, temporalizado, agachado, ávido de terra, de pó, de palha e de
carne, é principalmente uma febre de desesperança. Os chamados progressistas
querem aqui e agora o pagamento das promessas, e ameaçam levar à falência a
Igreja, má pagadora neste mundo. Querem o resgate dos títulos de felicidade
terrestre, e não o das almas.
07-10-1972
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