domingo, 2 de fevereiro de 2014

LIÇÕES DE SAINT-EXUPÉRY

 
ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
(29 de julho de 1900 – 31 de julho de 1944)

SAINT-EXUPÉRY (1900-1944), no dizer de Michel de Saint-Pierre, pertence à linhagem dos Maurras, Barrès, Bernanos, Montherlant, Drieu La Rochelle, Brasilach, Jacques Ploncard d´Assac – poderíamos acrescentar os nomes de Gustave Thibon e Marcel de Corte -; homens que souberam levantar a voz em defesa da condição humana, ameaçada pela tecnocracia totalitária, e o fizeram anunciando galhardamente verdades das mais necessárias para o homem do nosso tempo. Note-se, porém, que a defesa da condição humana de que se fala em tudo destoa do "humanismo maçônico" entoado pela ONU e pelos marxismos de todos os matizes e isto se notará facilmente em alguns excertos extraídos de sua obra póstuma: “Cidadela”  (Tradução de Ruy Belo, Lisboa: Aster). 

“- Quero que amem as águas da fonte. E a superfície ininterrupta da cevada verde, recozida na crepitação do verão. Quarto que glorifiquem o regresso das estações. Quero que se alimentem, semelhantes a frutos que se realizam, de silencio e vagar. Quero que chorem muito por muito tempo os seus lutos, que prestem demoradas homenagens aos mortos, porque a herança passa lentamente de geração para geração. (...) Deus faz-te nascer, faz-te crescer, enche-te sucessivamente de desejos, de pesares, de alegrias e de sofrimentos, de cóleras e de perdões, até que te faz ingressar de novo n’Êle. E, no entanto, tu nem és aquela estudante, nem aquele esposo, nem aquela criança, nem aquele velho. Tu é aquele que se realiza”. (I, p. 17)

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“Quando nenhum elemento estável liga as gerações umas às outras, a troca deixa de ser possível e o tempo passa a correr tão inútil como a areia de uma ampulheta. (...) Porque eu respeito em primeiro lugar o que dura mais do que os homens (...) Mas não espero nada do homem, se ele só trabalhar para a sua própria vida e não para a sua eternidade" (VI, pp. 32).

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“(...) a qualidade da civilização do meu império não repousa sobre a qualidade dos alimentos, mas sim sobre a das exigências e sobre o fervor do trabalho. Não é feita da posse, mas sim da dádiva. Civilizado, para mim, é aquele artesão que se recria no objeto e ao mesmo tempo passou a ser eterno, pois o abandonou o medo de morrer. Civilizado também aquele que combate e se troca pelo império. Mas estoutro embrulha-se sem beneficio no luxo comprado nas casas dos mercadores. (...) Sei dessas raças abastardadas que deixaram de escrever os poemas e apenas os lêem, que deixaram de cultivar o solo e passaram a apoiar-se nos escravos. É contra eles que as areais do Sul prepararam eternamente, na sua miséria criadora, as tribos ardentes que hão de subir até aqui, para a conquista das provisões mortas. Não amo os sedentários do coração. Aqueles que não trocam nada jamais se tornam coisa alguma. E a vida não terá servido para os amadurecer. E o tempo corre por eles como o punhado de areia, e perde-os. Que hei de remeter a Deus em nome deles? Quando deixaram desabar o deposito ainda por encher, é que pude avaliar bem a sua miséria. (...) A mágoa é sempre feita do tempo que corre e não formou o seu fruto” (VI, pp. 35).

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“Porque eu apenas me tenho preocupado dos direitos de Deus através do homem. E a verdade é que sempre concebi o mendigo como embaixador de Deus, sem por isso lhe dar demasiada importância. Mas Deus me livre de reconhecer os direitos do mendigo, da úlcera e fealdade do mendigo, embora ele e os companheiros as tratem como ídolos. (...) Lembro-me de ver um leproso rindo gordurosamente e limpando um dos olhos com um trapo sórdido. Era acima de tudo vulgar e estava todo satisfeito com sua baixeza. Meu pai decidiu o incêndio. E aquela turba, que tinha em muito as espeluncas bolorentas, começou a fermentar, reclamando em nome dos seus direitos. O direito à lepra no bafio. – Isto é natural – disse meu pai voltando-se para mim – porque, segundo eles, a justiça traduz-se em perpetuar aquilo que existe. E eles gritavam, apoiados no direito à podridão. – Se tu deixas que se multipliquem os hipócritas – continuou meu pai -, nessa altura nascem os direitos dos hipócritas. Os quais são evidentes. E nascerão cantores para os celebrarem” (VIII, p. 39).

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“- Obriga-os a construir juntos uma torre e vais ver que passam a ser como irmãos. Mas se queres que se odeiem uns aos outros, arroja-lhes um punhado de trigo. (...) Uma civilização repousa sobre o que se exige dos homens, não sobre o que se lhes fornece. (...) – Homem – dizia meu pai – é em primeiro lugar aquele que cria. E só são seus irmãos os homens que colaboram. E só se pode dizer que vivem aqueles que não encontraram a paz nas provisões arrecadadas. (...) Não queiras inventar um império onde tudo seja perfeito. (...) Inventa um império onde tudo seja simplesmente fervoroso”. (IX, PP. 43-44)

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“Só o sentido das coisas conta para o homem. (...) - Ora vê – dizia-me – como eles começam a tornar-se gado e a apodrecer docemente... não na sua carne, mas nos seus corações. Porque tudo para eles perdia o significado” (XI, pp. 49-50).

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“Em nome da justiça, cometeram assassínios sem conta. A justiça deles era principalmente igualdade. E quem quer que se distinguisse fosse no que fosse via-se esmagado pelo número. - A massa – dizia-me meu pai – odeia a imagem do homem, porque a massa é incoerente, puxa em todos os sentidos ao mesmo tempo e anula o esforço criador. É certo que o homem não deve esmagar o rebanho. Mas não procures aí a escravatura: essa manifesta-se quando o rebanho esmaga o homem” (XI, p. 51).

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“E eu me lembrava das palavras de meu pai: ‘se quiseres que eles sejam irmãos, obriga-os a construir uma torre. Mas, se quiseres que se odeiem, arroje-lhes um punhado de trigo’. Contatamos que eles iam perdendo a pouco e pouco o uso das palavras, de que já não precisavam. E meu pai passeava-me por entre essas faces ausentes, que olhavam para nós sem nos conhecerem, embrutecidas e vazias. Já só emitiam essas rosnadelas vagas, que reclamam o alimento. Vegetavam, sem magoas, sem desejos, nem ódio, nem amor. Em breve, deixaram mesmo de se lavar e nem sequer matavam os bichos, que assim foram prosperando. Começaram a aparecer os cancros e as ulceras. O acampamento começou a empestar o ar. Meu pai tinha medo da peste. E, sem dúvida, também pensava na condição do homem.
- Estou disposto a acordar o arcanjo que dorme, abafado, debaixo do esterco. Porque não são eles que eu respeito, mas é Deus através deles” (XI, pp. 51-52).

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“É uma coisa estranha: os homens perdem o essencial – fazia notar meu pai – e não dão por isto (...). E o homem, que ignora o desastre, não chora a sua plenitude murcha. (...) É por isso que convém manter permanentemente acordado no homem aquilo que é grande, e por isso também importa convertê-lo à sua própria grandeza. Porque o alimento essencial não vem das coisas, mas sim do laço que liga as coisas” (XII, pp. 52-53).

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“O cedro, quando a borrasca lhe quebra os ramos e o vento de areia o enrijece e ele cede ao deserto, não é que a areia se tenha tornado mais forte, foi ele que renunciou e abriu a porta aos bárbaros” (XIII p. 55).

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“Perguntava a mim próprio, no silencio do meu amor: ‘Por que é que eles não querem morrer?’ E pedia uma resposta à minha sabedoria. Não se morrer por carneiros, nem por cabras, nem por lares, nem por montanhas. Os objetos subsistem, sem necessidade de lhes sacrificar seja o que for. Mas já se morrer para salvar o invisível laço que os liga uns aos outros e os transforme em propriedade, em império, em rosto reconhecido e familiar. Por essa unidade já uma pessoa se troca, porque morrer também é construí-la. A morte paga, graças ao amor. E aquele que trocou a pouco e pouco a vida pela obra bem feita e mais duradoura do que a vida, pelo templo que caminha de século em século não hesita morrer se os seus olhos são capazes de distinguir o palácio da confusão dos materiais, e se anda deslumbrado por aquela magnificência e deseja fundir-se nela. Deixa-se receber e envolver no amor de uma realidade que é maior do que ele” (XIII, pp. 55-56).

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“Aí está - dizia eu - a verdade do homem. Ele só existe para a sua alma. À testa da minha cidade, porei poetas e padres. E eles farão desabrochar o coração dos homens” (XXI, p. 80).

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