GUSTAVO
CORÇÃO
(17 de dezembro de 1896 – 6 de julho de
1978)
Num interessante inquérito promovido pelas
revistas norte-americanas U.S. News and World Report, e publicado com grande
destaque pelo O GLOBO, desde os dias 18 e 19 do corrente, vem sendo abordado
problema da crise, do malogro ou do futuro da “democracia”. Numerosos
intelectuais norte-americanos e ingleses, de alto prestígio, como: Professor
Samuel P. Huntington — Cientista Político, Professor Charles Frankel —
Filósofo, Professor Robert L. Heilbroner — Economista, Professor Max Beloff —
Cientista Político, Professor William H. McNeill — Historiador, Professor
Michael J. Crozier — Sociólogo, Professor Friedrich A. Hayek — Economista e
Professor René Dubos. Cientistas, trouxeram sua contribuição ao debate que,
para esses intelectuais, parece assentado em claros postulados aceitos por
todos e motivado por mais uma inquietação do mundo moderno, ou pelo menos, do
ocidente moderno.
Em primeiro lugar observo que o termo
“democracia” sempre demarcado com o artigo “a” que reforça sua determinação
designa um conceito quase tão claro e tão unívoco como o de “quadrado”. Ora,
desde aqui me parece que esse inquérito aceita, sem sinais de relutância, todos
os movediços equívocos que formam a atmosfera cultural de nosso tempo.
Efetivamente, o termo “democracia”, no
tumulto provocado por guerras, revoluções, reformas de coisas irreformáveis e
mise en question de todos os princípios morais e religiosos, o termo
“democracia”, embora pretenda ter permanecido imóvel no mercado das idéias
baratas, sofreu deslocamentos semânticos denunciados pelos adjetivos que lhe
são anexados: democracia-liberal, democracia-cristã, democracia-popular etc.
Mas também sofreu deslocamentos metafísicos mais profundos e mais
perturbadores. Na sua primeira e clássica acepção o termo “democracia”
significava forma de governo caracterizada pela mais ampla participação do povo
— como “monarquia” significava forma de governo de mais concentrada autoridade.
No processo revolucionário que, nos
últimos quatro séculos, corre nos subterrâneos da História, o termo
“democracia” passou a significar uma filosofia de vida, e não apenas uma
especial forma de governo. Seria melhor dizer que passou a ser um humanismo,
que pretende marcar os eixos essenciais de uma nova civilização que deixara de
ser essencialmente cristã, mas ainda tolera ou respeita o cristianismo
subsistente como uma opção individual.
Voltaremos a abordar este provocante problema
de nosso tempo. No momento quero apenas assinalar a tranqüila simplicidade com
que todos os depoimentos colhidos toma o termo “democracia” no sentido amplo
tomado por Jacques Maritain em seu livro Cristianismo e Democracia, e que para
nós mesmos, durante a Guerra e em nossa ingênua Resistência Democrática, se
transformou em bandeira. Quase em religião.
Uma das vozes gravadas no inquérito da U. S.
News resumiu seu pensamento nesse ato de Fé: “Fora da democracia não há
salvação”.
Assinalo até aqui apenas este aspecto ingênuo
do inquérito, cuja leitura me traz uma curiosa sensação de haver remoçado
quarenta anos, da qual sensação, em vez de tirar e saborear as partes positivas
como dizem os boletins da CNBB, eu sinto ânsias de vômito. Sim, em lugar de uma
indulgente saudade dos “bons tempos”, sinto vergonha e tristeza de tudo o que
engoli naquele mundo brutalmente simplificado pela guerra.
Mas, depois de haver sofrido a mais
humilhante decepção jamais sentida por um cidadão do Planeta habitado, desde a
pré-história, sim, depois de ter sido esbofeteado por Satanás no dia da chamada
“vitória das democracias”, e depois de ter sofrido as conseqüências de todos os
equívocos da falsa guerra, da falsa vitória, da falsíssima paz, e mais falso
reformismo e progressismo religioso, posso admirar, sem nenhuma inveja, a
imobilidade dos intelectuais que viraram estátua de sal e tranqüilamente
ignoram a existência de vozes que, desde um Donoso Cortês, até um Pio X, e até
os mais ardorosos defensores do cristianismo, responsabilizam com justa
severidade esse mito de origem maçônica, como um dos principais corrosivos de
uma civilização que se desagrega em todas as suas partes.
Não sendo possível alhear-se inteiramente ao
espetáculo apocalíptico que até as crianças já começam a perceber, esses
professores, economistas e sociólogos do mais fracassado dos mundos descobertos
e civilizados por homens de outra têmpera e outra fé, esses capitalizadores de
erros se assustam diante do avesso da democracia. Seria o caso de dizer-lhes
que, neste himalaia de erros acumulados pelo novo humanismo que se afastou de
Deus, esses pobres herdeiros de imposturas e de enganos enganam-se tão
perfeitamente, que chegam a fingir que é dor a dor que deveras sentem.
Na verdade, a grande tragédia “desse
humanismo do homem-exterior” é aquele vínculo vicioso do amor-próprio que na vida individual prende
a alma à mentira com que ela mesma se exalta e se envenena. Em termos de
Teologia da História, e de transcurso dos valores de uma civilização que já foi
cristã, podemos dizer que a mentira da exaltação do homem-exterior — do
homem-autônomo, isto é, do homem que é a sua própria lei, do homem que se
declara adulto e que culmina na ascensão de imposturas quando anuncia uma
fraternidade nos mesmos dias em que proclama seu desprezo pelo Pai — chegou ao
máximo de seu trágico ridículo quando foram badaladas dentro das cúpulas de uma
Igreja que reformava, deformava e transformava o cristianismo num exaltado
humanismo.
O Globo, 29 de abril de 1976
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