quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

ENSINO E REVOLUÇÃO CULTURAL

RAFAEL GAMBRA CIUDAD
(21 de julho de 1920 - 13 de janeiro de 2004)


I – OS FATOS

Ninguém deixa de observar que algo muito grave para a sociedade e para o futuro está se projetando no âmbito do ensino. Os fenômenos são patentes: uma propaganda massiva e em escala mundial exige a generalização do ensino até o nível universitário, a “educação permanente”, sua gratuidade total e ainda sua subvenção pessoal, ao mesmo tempo em que arremete contra o chamando ensino “classista” reservado até agora “aos ricos”, e se comprova com estatísticas habilmente manipuladas em que se evidencia que apenas uma pequena porcentagem de universitários corresponde a filhos de operários.
Paralelamente, os ambientes rurais e os ofícios manuais se dirigem para o ensino superior de tal maneira que, pela primeira vez na história, nenhum deles conta com um porvir humano arraigado e capaz de prolongá-lo.
A vida docente e universitária, por sua vez, encontra-se em estado de colapso nos países ocidentais pelo incremento súbito de alunos e por seu estado de sedição permanente, até o extremo de não ser possível lecionar em muitas universidades se não sob a expressa presença da força pública.
Os Estados, em fim, incapazes de conter o fenômeno – ou interessados em seu futuro desenvolvimento -, promovem planos de extensão e subvenção massiva do ensino, mesmo que tenha como conseqüência a mais grave inflação ou a ruína do erário.
Compreender esta vertiginosa mutação em sua gênese, causas e previsíveis conseqüências, é tema demasiado amplo e complexo.
Vou me limitar, por isso mesmo, a sugerir ao leitor quatro pontos de possível meditação que o ajude a formar por si mesmo um critério independente dos slogans em uso e da opinião televisiva.

II - NOÇÃO DE ENSINO

Supor que o ensino e a cultura consistem em algo que se realiza ou alcança exclusivamente nas aulas, estudando mediante livros e explicações determinados conteúdos e programas, é uma restrição de conceitos inspirada na mentalidade racionalista.
O básico e o principal que o homem aprende – o mais firme e eficaz em sua formação – é o que aprende de seus pais, das primeiras respostas destes, do ambiente familiar, do meio humano em que cresce e, depois, da vida propriamente dita.
Com esta quantidade inicial de reconhecimentos recebe as primeiras emoções e impulsos da vontade – o que nele será indelével -; dai nascerão suas convicções e adições profundas, sua re-ligação para com um mais além (religião), a orientação de sua atenção, inclusive seus interesses e inclinações. Nos casos normais estes elementos que o homem recebe do meio familiar, ambiental e vital serão – no conjunto de sua cultura e cultivo – muito mais profundos e decisivos do que possa receber depois de livros e centros de ensino. Cada um pode comprovar por si mesmo.
Mais ainda: a cultura de livros é amiúdo deformante ou não passa de cultura postiça se não se edifica sobre este outro ensino básico de educação fundamental ou familiar.
Dai que arrancar uma criança de seu lar para encaminhá-la, em núcleos de concentração escolar, para um ensino superior, seja privá-la de algo muito mais importante para ele do que aquilo que se pretende lhe oferecer: frustrar nele seus pontos de referencia básicos, sua fé e convicções profundas, o calor do lar, e converte-lo – em muitos casos – em um homem espiritualmente anormal.
Não é necessário demonstração quando está ao alcance uma simples amostra. Observai o ambiente humano que está sendo criado nas atuais universidades, inclusive espanholas, aonde o numero de desarraigados pela imigração escolar e pela cultura televisiva já impõem sua tônica. Não espereis encontrar - como corresponderia à teoria – um meio de culto e fraterno de “redimidos pela cultura”. Vereis, ao contrário, um ambiente desagradável e insubordinado de cabeludos ou hippies, de ativistas revolucionários, de casais lascivos exibicionistas, de sodomitas dissimulados, de drogados, de padres “rebeldes”... e de rapazes e moças normais, mas em vias de se corromperem.
E os guardas – como imaginaríamos a Noé na Arca – tratando de que conviva de alguma maneira aquela heterogênea tripulação.

III – REVOLUÇÃO INDUSTRIAL (SÉC. XIX) E REVOLUÇÃO CULTURAL (SÉC. XX)

O parágrafo seguinte foi traduzido de uma obra muito recente de Jules MONNEROT, o mais destacado tratadista atual do marxismo (Sociologie de La Revolution, 7, 2, 2):

“Os estudantes, pela maleabilidade da juventude, pela concentração geográfica de que são objeto nas Universidades e nos campus em uma época em que seu numero tem aumentado prodigiosamente, e na que muitos deles (é a ‘democratização’) não foram previamente formados nas vigorosas tradições familiares, oferecem nos anos sessenta um meio condutor semelhante em muitos aspectos ao proletariado industrial de cento e vinte anos atrás: na proximidade estreita de indivíduos, na homogeneidade relativa da idade, na fogosidade e no ativismo próprios da juventude, e – digamos também – na ignorância. Ao que haveria de acrescentar, em alguns países como a França, um ensino marxista, mais ou menos dissimulado, recebido ‘mesclado’ nas escolas primárias e médias, com tudo o que isto implica de anulação do espírito critico pessoal... Estes ‘estudantes’ estão magnificamente preparados para uma pregação de tipo marxista, na mesma época em que, ao contrário, as classes operárias das sociedades desenvolvidas o estão cada vez menos. A propaganda marxista revolucionária poderá encontrar um auditório novo entre estas massas de estudantes, cujo numero não cessa de aumentar ao mesmo tempo em que o seu nível intelectual não cessa de diminuir”.

IV – TRADICIONALISMO E ENSINO

O que correntemente se denomina ensino – a instrução de livros e professores – é, sem duvida, necessário para homem que vive em sociedade, com tal (como dissemos) que se edifique paralela e harmonicamente com aquela outra proporcionada no ambiente familiar e humano. Os pais carecem, geralmente, de tempo, meios e preparação para proporcionar por si mesmos esta função docente. Ela há de proporcionar ao homem uma ampliação de horizontes cognitivos e axiológicos, assim como os saberes necessários para exercer uma profissão ou oficio. Um ensino básico ou geral é necessário a qualquer homem, seja qual for sua ocupação: toda sociedade, portanto, há de fornecer – de uma forma ou de outra – e facilitar um sistema de ensino básico acessível para que dele façam uso todas as famílias na educação de seus filhos, e o nível deste ensino básico ou geral deverá responder às necessidades ambientais, crescendo à medida que o meio social exige dedicações mais complexas e especializadas. Para além deste ensino geral básico existe outro que é próprio daqueles que vão dedicar sua vida à investigação, à profissões letradas ou àquelas outras técnicas que requerem um forte caudal de conhecimentos especulativos. Este ensino já não é geral – nem parece desejável que o seja -, posto que constitui uma dedicação na vida, e poucos, por lei natural, os que haverão de exercê-la. Incentivar para que todos cursem este nível de estudos implica uma imensa perda de energias e daria lugar a que a grande maioria das funções da vida social fossem realizadas pela via do fracasso nas profissões letradas ou cientificas.
   
Seria desejável que cursassem estes estudos superiores e titulados apenas aqueles dotados de condições para os mesmos e com decida vontade levá-los adiante. Fora destes, e em uma sã dinâmica da sociedade, os homens deveriam prolongar – e melhorar – a profissão de seu meio (familiar ou ambiental), para a qual encontrarão – em si mesmos - maiores incentivos (decorrente de sua inclinação) e facilidades que para qualquer outra.
Atualmente se fala muito de “igualdade de oportunidades” e inclusive se erige como ideal na organização do ensino. Se por tal se entende que todo individuo bem dotado intelectualmente e com decidida vontade possa alcançar os meios econômicos necessários para ascender ao ensino superior, o ideal é valido e desejável. Se se entende, em troca, o repasse ao Estado da função docente e orientadora de todo indivíduo por meio de obrigatoriedades e controles pedagógicos, tal sistema é nocivo e ruinoso moral e economicamente para a sociedade. Constitui a dissolução paulatina da família, à que se priva da tutela e orientação dos filhos, e contribui na criação de massas de desarraigados sociais que são “presa fácil” para todas as paixões e propagandas. Tal é a base sócio-política das chamadas “revoluções culturais”.
A sociedade anglo-saxônica – mais conservadora – manteve até nossos dias a existência de “fundações docentes” que financiam completamente os estudos superiores, em internato, de alunos distintos capazes de conseguir uma vaga mediante difícil concorrência. Tais centros possuem um caráter institucional próprio e diferencial, do qual seus membros se tornam solidários como de uma coisa corporativamente própria, o que lhes preserva da tendência massificadora. (Na Espanha teve este caráter o Colégio do Patriarca, de Burjasot no qual se formaram numerosas personalidades universitárias).
Quando o ambiente e a lei permitem – e ainda fomentam – tais instituições é freqüente encontrar pessoas que transferem seus bens para elas. Ninguém deixa seu dinheiro para realizações anônimas e uniformes, mas sim para fundações que tenham o caráter e os fins que o fundador deseja lhe imprimir, e em sua vida posterior a ajuda estatal (ou de corporações públicas diversas) pode contribuir para mantê-las ou ampliá-las.
Quando em um país existe um bom número destas fundações – e os governos federal, estadual e municipal sustentam também bolas de rigorosa seleção – pode se assegurar que nenhuma verdadeira vocação cientifica ou literária fique sem meios para seu desenvolvimento. E a existência de tais instituições não perturba em nada com incitações de deserção social nem com obrigatoriedades absurdas o vigor e autonomia das famílias nem a reta dinâmica da sociedade. É possível, ao contrário, criar as mais justas e desejáveis facilidades para o individuo dentro do princípio de subsidiariedade em relação as funções da família e do meio local.

V- A DISCRIMINAÇÃ DO AMANHÃ

A tendência socialista, ao converter o ensino em função ‘social’, obrigatório, geral e subvencionado, reserva ao Estado o controle sobre o destino profissional de cada cidadão, subtraindo-lhe o pátrio poder. O principio geral em que se apóia é o de um ensino para todos “sem discriminação de raça, posição econômica, religião (laica), sexo (co-educativa), etc”. Já se chegou a pensar, no entanto, a que discriminação nova conduzirá o sistema da absoluta igualdade e não-discriminação? Podemos perguntar hoje a qualquer um porque é o que é (em sua profissão), e não outra coisa. Se se trata de um enfermeiro, por exemplo, porque não é médico; se de um pequeno comerciante, porque não é um grande exportador internacional; se de um mestre de obras, porque não é um grande arquiteto, etc.
A resposta poderá ser: “Pois, veja você, porque não me dediquei e ainda não fazia questão. Isto é pessoal, vi em minha casa, é o que me interessou desde criança; me dediquei a isso e procurei melhorar o quanto pude”. Ou esta outra: “Circunstancias da vida. Tive muitas coisas para fazer e estou contente com isto”.
A resposta, em troca, no universo planificado da “indiscriminação igualitária” só poderá ser uma: “Porque sou incapaz (ou menos capaz): fui incentivado a crescer e me subvencionaram para isto. Mas... em casa tenho o documento de reprovação ou o teste que comprava oficialmente minha baixa capacidade”. Toda possibilidade de outra resposta foi eliminada.
Mas não se esqueça que é essa a única discriminação intolerável para o ser humano: a inteligência – já foi dito – é o dom melhor dividido: ninguém se lamenta se com ela for premiado.


Fonte: Revista Verbo (Madrid) Serie IX, n. 89, Novembro de 1970, p. 889-895. 
Tradução: Fernando Rodrigues Batista

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