JOSÉ PEDRO GALVÃO DE SOUSA (1912-1992), saudoso catedrático de Teoria Geral do
Estado, tendo lecionado também História do Direito Nacional, não foi apenas o
estudioso da filosofia política e da história, que nos deu entre outros livros,
“Política e Teoria do Estado”, “Iniciação à Teoria do Estado”, “Introdução à
História do Direito Político Brasileiro”, “Raízes históricas da Crise Política
Brasileira” e “A Historicidade do Direito e a Elaboração Legislativa”, pois se
debruçou sobre outros campos do conhecimento, nos trazendo nestas linhas que
retiramos de um precioso artigo originalmente intitulado “O Divórcio e a
Família do Futuro” publicado na infelizmente extinta revista Hora Presente (N.
9, Maio de 1971), lições mais do que nunca atuais.
***
Sacrifício:
de sacrum facere. Os sofrimentos em comum, na vida matrimonial, têm o sentido
de uma oblação. O matrimônio realiza-se na sua plenitude e torna-se fonte de
verdadeira felicidade quando os sacrifícios que exige são oferecidos a Deus, na
comum convicção dos cônjuges de que ao homem não cabe separar o que Deus uniu.
Esse
sentido mais profundo do casamento encontra-se nos povos primitivos e foi
expresso na limpidez dos conceitos do direito romano: nuptiae sunt coniunctio
maris et feminae et consortium omnis vitae, divini et humani iuris communicatio
(Modestino, D. 23. 2. 1).
Foi
preciso chegar ao neopaganismo contemporâneo – muito mais perverso do que o
paganismo dos antigos gentios, porque este era o de uma sociedade que viveu sem
conhecer o Cristianismo nem a Revelação mosaica, mas assim mesmo tinha
consciência do sagrado e respeitava a lei natural, ao passo que o neopaganismo
de hoje procede uma rejeição da mensagem cristã – para que ao casamento e à
família negassem os seus fundamentos religiosos.
Como
nos lembra Jean Daujat, “o mundo moderno é o mundo que rejeitou as tradições
religiosas sobre cujo fundamento a humanidade vivera até ai, e que se
constituiu em revolta contra o Cristianismo e contra a civilização cristã que o
precedera”. (DAUJAT, Jean. O Cristianismo e o homem contemporâneo, Porto:
Livraria Tavares Martins, p. 22).
O
divórcio, em nossos dias, é expressão do individualismo, ou seja, do “humanismo
absoluto” do homem moderno, que se manifesta em duas etapas: o individualismo
propriamente dito e o coletivismo, este, resultado e continuação daquele, sendo
no fundo o individualismo levado ao extremo.
Frisa-lo
o mesmo autor na obra citada (p. 21-22): “O humanismo absoluto do mundo moderno
pode, aliás, tomar duas formas. Na primeira, que prevaleceu aos séculos XVIII e
XIX, é o individualismo que reivindica uma independência e uma soberania
absolutas: a sociedade, neste caso, unicamente pode ser um contrato livremente
consentido só por ele, e onde ele faz a lei. É desta maneira que se terá uma
sociedade arrastada pelas tendências e interesses contrários dos indivíduos e
onde desaparece a noção de bem comum”. Daí a lei do divórcio, sobrepondo o bem
particular dos cônjuges ao bem comum. Tal individualismo caracteriza a
sociedade liberal fundada nos princípios da Revolução de 1789.
Daí
para o coletivismo é um passo: “bem depressa o indivíduo sentirá a incapacidade
de exercer a soberania, e deixa-se absorver na potência da coletividade. Bem
depressa igualmente os mais apetrechados explorarão e dominarão os outros. E
deste modo se passará do individualismo ao coletivismo: o humanismo absoluto
toma então uma forma nova que originará os regimes totalitários e que prevalece
hoje cada vez mais. A reivindicação de independência absoluta transita do homem
individual ao homem coletivo: é a coletividade que se atribui uma independência
e soberania absolutas e se considera livre de qualquer verdade e de qualquer
lei superior que se lhe imponham. O indivíduo torna-se então um simples
instrumento do poder coletivo”. É o que ocorre nas sociedades comunistas.
O
humanismo absoluto do homem contemporâneo é uma consequência da secularização
ou dessacralização das mentalidades e das instituições, que teve início no
outono da Idade Média e no dealbar da Renascença pagã e do protestantismo. A
dessacralização penetra hoje na própria Igreja, não sendo, pois, de admirar que
até mesmo certos católicos – quando não sacerdotes! – venham a público defender
o divórcio, postergando assim o caráter sagrado do matrimônio.
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