terça-feira, 28 de janeiro de 2014

EDUCAÇÃO E ENSINO

RAFAEL GAMBRA CIUDAD
(21 de julho de 1920 - 13 de janeiro de 2004)
 
*Nota: Embora escrito em 1970, o artigo o saudoso filosofo espanhol Rafael Gambra (que combateu vigorosamente o liberalismo católico até a data de sua morte) não perdeu em nada a sua atualidade. Ao contrário, sua vigência é patente uma vez que a educação, monopólio do Estado, não passa de instrumento deste para a doutrinação ideológica, massificação e despersonalização do ser humano. Do saudoso filosofo já publicamos "aqui" outro artigo sobre o mesmo tema e que vale a pena sua leitura. 
É curioso – e cheio de significação – observar as variações de nome que o Ministério encarregado do Ensino tem sofrido na Espanha. Chamado desde sua fundação de Ministério de Instrução Publica, trocou seu nome em 1937 (Zona Nacional) pelo de Educação Nacional, e voltou a modificar em 1968 pelo de Educação e Ciência.
A primeira denominação corresponde à época liberal, e parece a mais modesta ou menos ambiciosa das três: instruir (apenas), na esfera publica (não privada). Encerra já, sem embargo, um viés estatista, filho do constitucionalismo da Revolução francesa: atribuir ao Estado, entre seus fins, a instrução geral do país, sua promoção e direção. Jamais, sob o antigo regime, se teria conferido a uma Secretaria uma obrigação tão ampla e pessoal: a instrução era – se entendia – assunto das famílias, dos mestres, dos grêmios, das Universidades, da Igreja, etc.
As duas mudanças de nome anteriormente aludidas correspondem às duas variações de mentalidade ou de “ortodoxia publica” que sobreveio desde a época liberal. Uma, o Alzamiento Nacional de 1936: o Ministério toma o nome de Educação Nacional quando se estabelece, no ano seguinte, em Vitoria. Em troca, parece profundo e expansionista: afeta ao substantivo e ao adjetivo, amplificando-os. Não mais instrução – que era transmissão de conhecimentos -, senão educação – que é pré-formação e direção do homem como um todo -; não relativo somente a uma função publica complementar ou diretiva, senão nacional, referida a todo o corpo e a alma da nação.
Sem embargo, a intenção da nova denominação não foi tão “totalitária” quanto poderia parecer. Em rigor, a mudança do substantivo e do adjetivo se fizeram por caminhos mentais distintos e sob imperativos ideológicos – embora pareça estranho – mais religiosos e descentralizadores que estatais. Se abria caminho então à ideia de que o objetivo de um ensino cristão e adequado não se circunscreve apenas em instruir a mente, senão formar a vontade e conduzir o homem ao seu destino natural e sobrenatural: educá-lo.
Sua natureza, por outro lado – se argüia -, não era puramente publica ou civil, isto é, destinada a habilitar para a convivência, senão algo com um sentido inspirado na tradição e no espírito da pátria (da nação), espírito que em 1937 se reconhecia, antes de tudo, religioso: nacional, ao fim. O sentido que o termo nacional adquiriu até se identificar com o estatal não estava nas mentes daqueles que realizaram aquela mudança de denominação, e, menos ainda, a pretensão de educar a nação pela ação estatal. Prova disso é que a Lei de Ensino Médio de 1938, obra daquele Ministro em plena guerra – do Sr. Sainz Rodríguez – é em seu conteúdo a mais humanística (no sentido de cultivo das humanidades clássicas) e religiosa de quantos já houveram, e em seu alcance público, a mais centralizadora e libertadora do ensino privado e religioso em relação à educação oficial.
A segunda mudança – recente - de nome ministerial obedece à segunda mudança de “ortodoxia pública” experimentada em nossa pátria durante o período que abarcam nossas vidas. Se trata do que poderíamos chamar de capitulação ante a ONU (na ordem cultural e docente, ante a UNESCO) ou aceitação de seu espírito, metamorfose que opera nos anos em que vivemos.
A ideia de um ensino igualitário, tecnológico, obrigatório, gratuito, co-educativo e neutro (imperativos inspirados no Plano que Condorcet propôs à Assembleia Legislativa da Revolução, e com o qual coincidem hoje a UNESCO e o marxismo) substitui rapidamente a de um ensino religioso, de base familiar, clássica e patriótica, que inspirou a Lei de Bacharelado de 1938.
Testemunho disso é o atual Projeto de Lei geral de Educação, patrocinado e elogiado pela própria UNESCO. Caberia pensar que a mudança de denominação do Ministério para “Educação e Ciência” – suprimindo o qualificativo “nacional” – responde a uma desestatização do conceito (pelo sentido de estatal que o termo nacional adquiriu) ou a ressonância fascista que a expressão poderia ter (educação para a Nação, como unidade primitiva da que instituições e cidadãos recebem o seu direito e liberdade). Se respondesse a tais desígnios, a mudança de nome nos pareceria acertada e plausível.
Mas aqui, como na mudança anterior, as aparências enganam. O que se impugna no qualificativo nacional que se suprime não é o sentido estatal, nem tampouco sua ressonância totalitária, senão o caráter qualificativo que outorgava à educação um sentido nacional espanhol (religioso e pátrio), contrário à neutralidade religiosa e à tendência supra-estatal – tecnocracia universal – da UNESCO. Isto é, o que incomodava os atuais reformadores no qualificativo nacional não é o que nele nos incomodaria, senão – ao contrário -: o que do termo era conforme a mentalidade religiosa e tradicional (a adição de “e Ciência” tem por objeto dissimular a supressão e que o novo nome pareça diminuído ou mutilado). Prova disso é a intenção profunda do Projeto de Lei Geral de Educação que, longe de limitar a função nacional (ou estatal) na educação, se dirige a transferir esta da família (e dos centros privados e religiosos) para o Estado (aos seus Centros e aos “homologados”). Ao mesmo tempo, o caráter especulativo e humanístico dos estudos é substituído (de forma tendenciosa) pelo tecnológico, e o religioso pela neutralidade e o mero civismo.
Deixando já o comentário destas alterações na denominação ministerial, assinalemos que o conceito de ensino difere profundamente do de educação. O segundo – muito mais amplo e profundo – supõem em grande medida o primeiro, mas o ultrapassa amplamente. Ensino ou instrução é uma mera transmissão de conhecimentos. Educação (de e-ducere) é a ação de extrair do sujeito suas potencialidades e conduzi-las para o seu reto fim. Afeta não apenas a mente, senão também a vontade e a sensibilidade, as convicções e emoções, raízes de uma personalidade. A criança não deve ser meramente instruída, senão educada; e toda educação (direção de potencialidades) supõe um termo e um esquema axiológico, valorativo. Dai que não seja concebível sem um prévio sistema moral, nem sem uma concepção religiosa mais ou menos expressa.
O âmbito próprio e primeiro da educação é a família, e de seu arraigo e coesão depende em alto grau a profundidade de uma educação humana, como de sua debilidade a extensão da corrupção.
Depois da família – e em decorrência da mesma – o meio local e profissional, o mundo humano que rodeia e condiciona o meio familiar também constituem o âmbito da educação.
Apenas em segundo plano, o é também o labor do docente ou do educador coletivo, cuja tarefa é mais instrutiva que educadora como é a dos pais, sem que uma nem a outra exclua a dualidade de aspectos. Supor que realidade tão complexa e profunda como a educação possa ser atribuída, como objeto próprio, a um gabinete ministerial – ou a uma lei – é influencia de um racionalismo esquematizador que pesa já secularmente sobre as mentes do Ocidente.
O labor do mestre – modesto em seu aspecto educativo e subordinado sempre ao labor familiar – e a função promotora e ordenadora do Estado neste domínio podem contribuir – pela mutua implicação das funções sociais – com a preservação e melhora dos ambientes locais e familiares. Mas jamais poderá substituir nem exercitar-se à margem ou contra a influência familiar, que é a base – pela lei divina e natural – criação e educação do ser humano.
Como escreveu Augusto Comte: “a eficácia moral da vida doméstica consiste em formar a única transação natural que pode habitualmente nos livrar da pura personalidade para nos elevar gradualmente até a verdadeira sociabilidade”.
A frase acima, extraída de um trabalho de MARCEL DE CORTE, assim é comentada pelo filosofo belga:
“Nessa banal afirmação se esconde um tesouro inesgotável. Com efeito, o que nos ensina a viver uns com os outros senão receber na família uma educação política sob suas formas diversas? Educação da amizade, da obediência, da confiança, educação da colaboração, da abnegação, da responsabilidade, educação da justiça, da generosidade, do espírito de economia, do respeito da piedade para com as tradições, da inteligência e da vontade, educação da continuidade temporal pela recordação do passado, pela ocupação do presente, pela preocupação do porvir; educação no espaço social pelas relações com os próximos, os colaterais, os consangüíneos, os parentes... Não acabaríamos de enumerar as facetas da educação com ressonância política que a família dispensa, com inesgotável prodigalidade, sem o menor plano preestabelecido, em função das necessidades sempre variáveis da vida, com uma capacidade criadora e um poder de invenção que surge de improviso, que confundem o observador sob a imperiosa pressão da natureza social própria do homem operando em cada membro da comunidade familiar e da natureza dos seres, das coisas e dos acontecimentos com os quais cada um deles tiver que enfrentar (...). Como compreender a terra dos pais sem referencia à família? Como fugir da obrigação de amá-la que se inicia na família sem com isso estremecer os fundamentos da comunidade política?”
Para Platão e os antigos, a polis ou cidade humana é, antes de tudo, uma escola de educação (de civilização, de cives), e a sã e reta cidade – com a boa terra para a planta – são necessárias para a vida virtuosa, objeto ultimo de toda educação. A corrupção – ou a mera decadência dos ambientes – é causa imediata da ruína moral dos homens. Daí o interesse primordial da antiga pedagogia pela manutenção dos costumes, que são, como os hábitos para o indivíduo, o sustentáculo da sociedade em seu vigor e tensão interiores; e seu apoio do mesmo modo ao princípio de autoridade, especialmente do pátrio poder, a cuja imagem – sábio “paternalismo” – se concebia o ideal de toda e qualquer autoridade, inclusive a do Rei e a do Papa (Santo Padre, por excelência).
Conceber – como se faz hoje – os costumes e as raízes (o arraigo, o afinco, a tradição) como estorvos/impedimentos ou “tabus” irracionais para o desenvolvimento e liberdade do homem, e substituir a educação familiar e paterna por um ensino massivo, estatal e regulamentador, é destruir os verdadeiros e estáveis fundamentos da ordem moral e do reto desenvolvimento da personalidade. Não nos esqueçamos que o último e mais refinado instrumento da Revolução é a chamada “revolução cultural”, cujos efeitos se revelam fulminantes para a definitiva estabulação gregária do gênero humano, e que, por desgraça, tantas versões tem embaladas “para exportação” no mundo de hoje.

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Fonte: Revista VERBO (Madrid) Serie IX, ns. 85-86. Maio-Julho de 1970, p. 439-444. 
Tradução: Fernando Rodrigues Batista

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