sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A DEMOCRACIA COMO RELIGIÃO: A FRONTEIRA DO MAL




RAFAEL GAMBRA CIUDAD
(21 de julho de 1920 - 13 de janeiro de 2004)

 
Foi Aldous Huxley, em sua fábula futurista Admirável mundo novo, quem sugeriu que o que chamamos de axioma – quer dizer, uma proposição que nos parece evidente por si mesmo e que por ser tal a aceitamos – é possível ser elaborado para um individuo ou para um ambiente determinados mediante a repetição, milhares de vezes, de uma mesma afirmação. Para levar a cabo – a gênese artificial de axiomas e dogmas – propunha a utilização, durante o sono, de um mecanismo repetitivo que falasse sem interrupção a nosso subconsciente, capaz, durante horas, de receber e assimilar qualquer mensagem.
Este desígnio está, após meio século, muito próximo da realidade, embora seja através de técnicas não exatamente iguais, como o próprio Huxley acentuou em seu Regresso ao mundo novo.

A realização mais importante neste sentido através de métodos de saturação mental pelos mass-media tem sido, em nossa época, o estabelecimento em escala universal do dogma-axioma da democracia. Conseguiu-se fazer desta noção – em seu sentido individualista e majoritário – a pedra angular da mentalidade contemporânea. Quer dizer, aquilo que Willmore Kendall e Frederick D. Wilhelmsen denominaram a “ortodoxia pública” de nosso tempo.
Este expressão significa para estes autores, o conjunto de bases conceituais ou de fé em que se assenta toda sociedade histórica, elementos que são, ao mesmo tempo, ideias-força para seus membros e pontos de referência para se entender em uma mesma linguagem e se encaixar, em último extremo, em uns quantos axiomas e dogmas que apenas os inadaptados ou extravagantes exigiriam fundamentar.
A consolidação do dogma da democracia e de sua axiomática foi, evidentemente, obra de muitos anos, mas somente agora é que conhece sua vigência universal.

No final dos anos vinte, já se considerava, na linguagem política espanhola, que, através da ditadura do General Primo de Rivera, era obrigatória a “volta à normalidade constitucional (ou democrática)”. Hoje se acredita, no mundo todo, desde a Europa mais culta até a selva africana, que somente as eleições “livres” (de sufrágio universal) podem justificar um governo ortodoxo. Qualquer outro governo receberá o qualificativo de “ditadura” e se convocará cruzadas contra ele, após sua denuncia universal, como violador dos “direitos humanos”, que constituem a apelação ultima que em outro tempo se situava no juízo de Deus Uno e Trino. Existem, é certo, determinadas tolerâncias ou concessões em favor da perfeição universal do quadro: o mundo soviético ou sovietizado e múltiplos sultanatos árabes prescindem de toda consulta a “opinião pública” e base que se auto-intitulem “populares” ou “democráticos” para gozar de uma suficiente imunidade.
Não é preciso recordar que a constelação de princípios que formam a ortodoxia democrática está muito longe da evidencia dos axiomas. Mais ainda, penso que chegará um tempo de que o governo dos povos – e a educação dos homens em seu seio – tenha estado confiado ao sistema de opinião e maioria. Alguns destes princípios são da dimensão epistemológica que pode ser verificado nas seguintes enunciações:

a) O poder nasce da Vontade Geral e não reconhece outra origem ou título.
b) A Vontade Geral se identifica com a opinião pública em um dado momento.
c) O voto de todos os cidadãos tem o mesmo valor.
d) O conteúdo dessa opinião se expressa nos nomes dos candidatos e dos partidos e nos slogans eleitorais.
e) Os partidos e seus aparatos publicitários são os artífices dessa opinião.


De onde se segue como corolário obrigatório: as técnicas de publicidade e de influencia subliminal (o condicionamento de reflexos, em suma) é que governa os povos.
Sem embargo, esta serie de enormidades que constituem a “ortodoxia pública” da democracia tem sido admitida inclusive pela Igreja oficial de nossos dias. Assim, quando na Espanha – ou em qualquer outra democracia – acontece de trupes teatrais representar espetáculos sacrílegos ou blasfematórios com subvenção oficial, os prelados, em sua maioria, nada dizem, porque sua intervenção poderia ser interpretada “como uma coação à liberdade de expressão cidadã”. E os que protestam não o fazem em nome e pela honra de Deus, senão porque “tais espetáculos ofendem uma maioria católica do povo espanhol”. Quer dizer, em nome da Democracia e para sua defesa.

Assim, também, quando as organizações ditas católicas protestam contra a laicização do ensino oficial e contra as leis confiscatórias (ou dissuasórias) do ensino privado religioso, não o fazem já em razão de que a educação em um país católico deve ser católica para todos (com as exceções devidas aos declaradamente irreligiosos ou de outras religiões). Se limitam a defender certo lugar confessional dentro da grande democracia que formamos (“nossa democracia” ouvimos dizer); isto é, defender o direito dos grupos católicos que desejem possuir escolas confessionais.
Até tal ponto tem penetrado o espírito da democracia liberal na mentalidade de hoje e em sua “ortodoxia pública” que o declarar-se não-democrata ou contrário à democracia soa nos ouvidos como em outro tempo a apostasia expressa ou a blasfêmia.

Muitos católicos que recusariam o qualificativo de socialista, ou de divorcista, ou de abortista – que, inclusive lutam contra estas ideias – não veem inconveniente algum em se declararem democratas ou liberais e militarem em partidos com estas denominações.
Sem embargo, uma vez admitida a Vontade Geral como fonte única da lei e do poder que lógica poderá opor-se à socialização dos bens ou do ensino, à ruptura do vínculo matrimonial, às práticas abortistas ou à eutanásia, se tais desígnios ou supostos direitos figuram no programa do partido majoritário? A democracia moderna, com seu aspecto equívoco e aceitável é, na realidade, a chave e a porta para todas essas aberrações e as que lhes seguirão.

É que, no campo dos males, como no dos bens ou valores, existe uma hierarquização que podemos estabelecer sem mais que recorrer, por via de negação, às Tabuas da lei. Assim, podemos ver que a socialização dos bens ou do ensino se opõe ao sétimo mandamento (não furtar) e ataca diretamente a família, instituição de origem divina; o divórcio se opõe à esta mesma instituição e, geralmente, ao novo mandamento (não desejar a mulher do próximo); o aborto e a eutanásia atentam contra o quinto mandamento (não matar)...
Mas a raiz mesmo da democracia moderna se opõe ao primeiro e principal destes mandamentos, aquele ao que se reduzem os demais: “amarás ao Senhor teu Deus, acima de todas as coisas”. Propugnar a laicização da sociedade (negar-lhe um fundamento religioso) e derivar a lei unicamente da convenção humana equivale a cortar os laços da convivência humana em relação a Deus, a negar a religião (ou re-ligação do homem com o seu Criador). As transgressões daqueles outros mandamentos podem ser, em alguns casos, pecados de debilidade: a transgressão deste é pecado de apostasia.

Dai o martírio aceito sem vacilação pelos primeiros cristãos na Roma Imperial. Eles desfrutavam em seu tempo de uma situação de “liberdade religiosa”; quer dizer, não eram condenados por praticar seu culto. Um status parecido ao que outorga a democracia moderna às confissões religiosas, ainda que com fundamento distinto. Os romanos admitiam em seu politeísmo todos os cultos e divindades. Não tiveram inconveniente em admitir ao Deus cristão entre as divindades do Capitólio e autorizar livremente o culto cristão. Mas com a condição para os cristãos de reconhecer, ao menos tacitamente, o politeísmo e de adorar o Imperador como símbolo e garante da religiosidade oficial. E aqueles cristãos que se mostravam em tudo bons cidadãos, preferiram o suplicio e as feras do circo antes que renegar a unicidade todo poderosa do verdadeiro Deus.      
Situação semelhante é a dos católicos dentro de um país de Cristandade ante a aceitação voluntária da democracia moderna. Com o agravante de que aqui o status de liberdade não se apóia em uma distinta aceitação da religião, senão em uma negação desta, de toda religião, que passa a ser considerada como assunto privado ou de opinião. Já não se trata de uma religião falsa, senão um antropocentrismo ou culto do Homem.

Hoje não há que reconhecer como deus o imperador, mas sim a Constituição.
Certamente que na democracia não se exige de modo tão rotundo esse reconhecimento sob forma de adoração, e o caso se presta a interpretações ou “desencargo de consciência”. Mas para quem esta aceitação não seja obrigatória nem formularia, senão ato voluntário através da adesão ao sistema ou a um partido, o caso é objetivamente mais grave que para os cristãos de Roma.
Tais reconhecimentos são opostos também às duas primeiras petições que formulamos no Pai Nosso, a oração que o próprio Cristo nos ensinou: “santificado seja o Vosso Nome; venha a nós o Vosso Reino”. O democrata liberal as substitui implícita (ou explicitamente) por “eliminado seja Vosso Nome; venha a nós a secularização, o reino do Homem”. E se opõem, por fim, aos dois últimos ensinamentos que nos deixou Jesus Cristo Nosso Senhor em sua vida mortal antes de ser conduzido ao suplicio: quando diante da autoridade civil (Pilatos) e diante da autoridade religiosa (Caifás) afirma a Verdade e a autoridade de origem divina.  

A democracia liberal se apresenta assim, sob sua verdadeira luz, como a fronteira do mal; aquela linha de demarcação que, ultrapassada, nos coloca fora “dos que pertencem à Verdade”; quer dizer, no reino dos que, por aclamação popular, obtiveram a morte de Cristo. O reino em que já não se fala de verdade nem de autoridade, senão de opinião e de povo. No qual os crentes n’Ele só pedirão seu lugar no seio do pluralismo laicista para viver tranquilamente sua fé sobre uma apostasia imanente.
Mas ocorre que a negação de Deus acarreta como corolário inevitável a negação do homem: O que poderá se construir na cidade humana sobre a areia movediça da opinião e do sufrágio? O que para posteridade a sociedade democrática na qual o homem só serve a si mesmo? Eliminado pela raiz o Fim Supremo e a re-ligação com Ele, quanto durará os fins subordinados e uma vida que não conduza ao marasmo do tédio e dos vícios acumulados? É a sociedade que temos atualmente, eminentemente nos países mais desenvolvidos economicamente: a sociedade na que sobram meios de vida, mas falta uma razão para viver.


“Os povos, as civilizações – já se disse – são como uns estranhos navios que cravam suas ancoras no Céu, na Eternidade”. A democracia liberal está consumando a ruína de nossa civilização e, por contágio, de toda outra civilização. Porque a civilização cristã (ou clássico-cristã) não foi substituída por outra, senão por uma anti-civilização ou uma dissociação que, se subsiste, é a custa dos restos difusos daquela cultura originária, daquela – hoje combatidíssima – ordem das almas.
Se evidencia assim que nenhuma concepção da ordem política pode resultar mais letal ou aniquiladora para a comunidade humana que a democracia moderna ou “sociedade aberta” (open society). Postular uma sociedade sem fé e sem princípios, sem normas estáveis, neutra, carente de pontos de referência, dependente apenas da opinião pública e da utilidade do maior número, é como revogar a disciplina de um navio, esquecer seu rumo e a ordem das estralas, abandoná-lo à deriva. Para onde se dirigirá tal navio? Em que idioma se entenderá sua tripulação? Como contornará as tempestades? O que justificará sua unidade e sua própria existência?

Quando, por exemplo, o Presidente da República francesa – ou de qualquer outra democracia moderna – apela ao heroísmo da Legião para resolver um conflito armado grave, em nome de que o faz? Com que direito? Se nada existe fora do interesse dos cidadãos e da opinião da maioria, como exigir de homens jovens que entreguem tudo o que possuem: sua vida? Somente por um recurso imoral a normas, crenças e valores permanentes, que a própria democracia nega, poderá recorrer a tais meios de coerção e de conservação.
Caberia uma objeção em nome da universalidade da razão. Se toda sociedade histórica, para sua simples existência e perduração, precisa ter seu assento em uma fé e em um fervor coletivos, em determinadas noções do que é sagrado e reto, do que é o dever e o sentido do sacrifício, significará isto que cada civilização é impenetrável intelectual e emocionalmente para àqueles que não fazem parte de sua tração ou de sua herança?  Haverá de se dar razão ao ditado de Spengler, de Toynbee e de determinados estruturalistas para quem as culturas são sistemas fechados, cujo sentido é imanente a um sistema intransferível de pontos de referência?

Nada autoriza tal conclusão. A razão é um recurso capaz de penetrar tudo o que é puramente humano e, inclusive, dentro de certos limites, a ordem mesmo do ser. A civilização ocidental de origem cristã – nossa civilização histórica – foi encarregada de demonstrar na prática esta capacidade da razão. Sua fé – nossa fé – foi propagada em todos os âmbitos da terra e se arraigou, em maior ou menor grau, nas civilizações mais dispares. Sua ciência, sua técnica, suas categorias mentais e seus modos de comportamento – basicamente racionais, anti-míticos – se estenderam para todo o mundo, penetrando-o em boa parte. Seja como cultura superposta, seja como enxerto cultural, pode hoje se dizer que uma só cultura – a ocidental – é a cultura comum do planeta.

Sem embargo, e paradoxalmente, está planetarização de uma cultura racional só pode se realizar através de uma civilização determinada – a ocidental -, civilização que, como todas, nasceu de uma fé – de uma ancoragem na eternidade -, e se edificou sobre determinadas normas e determinados valores morais. E isso porque, conforme uma máxima filosófica, operari sequitur esse, o operar segue ao ser: não se expande uma civilização sem antes ser, existir. E se apenas neste caso foi possível o efeito de uma difusão de certo modo universal foi, precisamente, porque tal civilização se apoiou originariamente na Religião Verdadeira.

Na renuncia destas origens se encontra a raiz ultima da crise em que se debate a sociedade ocidental. Crise não circunstancial senão degenerativa, estendida em forma de rebelião generalizada, e, por via de contagio, à outras civilizações, inclusive à própria natureza invadida e contaminada. A expressão desta renuncia de toda ancoragem sobrenatural é a democracia liberal; mais ainda que renúncia, negação de toda transcendência, construção da sociedade do Homem e para Homem.
Porque a decantada “sociedade aberta” – a dos “Direitos humanos” – ignora o primeiro e principal dos direitos do homem, que é o de buscar a verdade e servi-la, o de fundamentar nela sua vida e o rumo eterno de sua peregrinação terreal.

 
Fonte: Revista Roma, n. 89, Agosto de 1985.

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