(02 de setembro de 1903 – 19 de janeiro de 2001)
Em
um século em que reina o conformismo do absurdo e da desordem, em que o ídolo
da revolução permanente se converteu no centro de atração para os rebanhos de
escravos teledirigidos, não há nada mais novo nem mais insólito que pregar o
retorno às fontes e defender a natureza e a tradição.
“Nunca
como hoje o gênio de uma época se aplicou à destruição minuciosa de sua própria
Cidade humana (de seus valores e de seu sentido) até o extremo paradoxo de que
o conformismo ambiental se expressa hoje pela atividade revolucionária, e que a
posição insustentável, heroica, chegou a ser a conservação e a fidelidade” (cfr. Cap. I, p. 25).
A
“Cidade dos homens” que defende Rafael GAMBRA constituía-se de um
conjunto de laços vivos e vividos que, através dos diferentes níveis da
criação, mantinham o homem unido à sua origem e o orientava para seu fim. A
casa, a pátria, o templo, o protegiam contra o isolamento no espaço; os costumes,
os ritos, as tradições, ao fazer gravitar as horas em torno de um eixo imóvel,
o elevavam acima do poder destruidor do tempo.
Hoje
presenciamos a agonia desta “Cidade dos homens”. O liberalismo, ao
isolar os indivíduos, e o estatismo, ao reagrupá-los em vastos conjuntos
artificiais e anônimos, transformaram a sociedade em um imenso deserto aonde as
areias sem rumo são arrebatadas nos torvelinhos do vento da história. E o
homem, vítima deste fenômeno de erosão, já não tem morada no espaço (se encontra,
ao mesmo tempo, na prisão e no deserto), nem ponto de referência em um tempo
pelo que corre cada vez mais depressa sem saber para aonde vai.
As
Cidades de outrora, ao enlaçar o homem com as realidades visíveis e invisíveis,
o ajudavam a elevar-se sobre si mesmo. Hoje em dia, o ideal que lhe é proposto
não é vertical, senão horizontal: está na corrida mesmo, na “fuga para
frente”, e não no crescimento espiritual. Em lugar de tentar produzir um
arquétipo eterno, o homem deve se deixar arrastar por um movimento perpétuo e
sempre acelerado.
(...)
As
antigas formas da sociedade, ao impregnar de sagrado quase todas as
manifestações da vida temporal, penetravam o eterno no tempo e Deus se fazia
presente na história. Mas esta aliança do social e do divino desmorona quando o
homem não reconhece outro deus que ele mesmo, nem outra pátria que o mundo
temporal transformado e desfigurado por suas mãos. E se aproxima a grande
passos a hora em que a idolatria do porvir lhe ocultará a eternidade.
Esta
será, sem dúvida, para os últimos fieis, a suprema prova da fé. A pureza, o
heroísmo dessa fé serão medidas pela resistência do pneuma divino,
interior e livre (spiritus fiat ubi vult) em relação ao vento servil da
história. Ante o silêncio de Deus, os crentes de amanhã terão talvez que
escolher entre a realidade invisível de uma eternidade em aparência sem provir
e a miragem brilhante de um porvir sem eternidade.
BÉRULLE
definia o homem como “um nada capaz de Deus”. Mas eis que esse homem se
transforma cada vez mais em um falso deus, incapaz do Deus verdadeiro. Chegaremos
até o termo desta subversão e haverá que desaparecer da Cidade dos homens?
Rafael GAMBRA se compraz em repetir as palavras demasiado lucidas de TAINE: “nenhum
homem sensato pode já esperar”. Mas não esqueçamos (cito novamente
Françoise CHAUVIN) que a “lucidez é a pior das cegueiras se não vê nada mais
além daquilo que se vê”. O cristão, imitando o apóstolo São Paulo, está
obrigado a esperar contra toda esperança (contra spem in spe), porque
Cristo venceu o mundo e esta vitória abarca a totalidade do tempo e do espaço.
E, por incertas que sejam as probabilidades de êxito, nossa missão aqui embaixo
consiste em restaurar pacientemente, em nós e em nosso redor, as condições para
uma restauração da Cidade dos homens; quer dizer, em preparar um porvir à eternidade.
Com
este chamado termina este belo livro. Nosso desejo mais fervoroso é que seja
escutado, no segredo das almas, como um eco do silêncio de Deus.
Fonte: Prólogo do livro "El
silencio de Dios" (Ciudadela, 2007), do ilustre pensador espanhol Rafael
GAMBRA CIUDAD (julho de 1920 – janeiro de 2004).
Tradução: Fernando Rodrigues Batista
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