ANDRÉ CHARLIER
(1895-1971)
Esta carta de André CHARLIER merece ser lida duas vezes. Uma,
por seu conteúdo e oportunidade; Outra, tendo-se em vista a data em que foi
escrita, 22 de outubro de 1954, quando Charlier era diretor da escola
preparatória de Clères, na Normandia. Embora escrita para pais franceses, estas
breves reflexões certamente interessarão ao leitor brasileiro.
Prezados
amigos, escrevi há muitos anos "cartas aos pais", e parei de
escrevê-las, uma vez que, no final, não via utilidade. Elas não persuadiam
senão aqueles que já se encontravam persuadidos. Muitos me escreviam: «Como o
sr. tem razão!», mas não passavam desta aprovação platônica. Ora, tenho muito
pouco tempo para escrever coisas inúteis. Se escrevo aos senhores hoje mais uma
vez, é porque uma imperiosa necessidade me incita a isto. É preciso, de todo
modo, que o homem ao qual os senhores confiaram a educação de seus filhos lhes
diga o que pensa da juventude da França que cresce. Sua responsabilidade moral,
como a minha, está empenhada e é preciso que aos senhores seja apresentada a
realidade. O quadro que apresento é uma visão geral cujos elementos não foram
tomados apenas do que pude constatar na Escola. Do que tenho a lhes dizer, cada
um aproveitará o que quiser ou puder.
O
que me espanta mais, é o quanto esta juventude é pouco viril. E por que é
assim? Porque, simplesmente, os senhores jamais exigiram nada dela. Os senhores
apenas se preocuparam de que fossem felizes e realizaram todos os seus desejos;
desde a primeira infância, os satisfizeram de todos os modos possíveis; como
poderão querer que tenham a ideia de que, por um lado, a vida é difícil, que as
coisas difíceis são as únicas que interessam e que, por outro lado, todas as
alegrias se compram e mesmo que custam tanto mais caro quanto mais elevadas
são? Tudo sempre lhes foi dado e eles julgam normal que tudo lhes seja dado,
estimam mesmo que é seu direito; e como a cultura e a ciência não se comunicam
por si mesmas, veem nisso uma espécie de injustiça. Eles não estão longe de se
considerarem vítimas, posto que o Latim e as matemáticas não entregam tão
facilmente os seus segredos.
Isto
é assim porque, na educação que os senhores lhes deram, eles sempre receberam
tudo de graça. Os senhores foram vítimas da demagogia universal e do moderno
liberalismo, que considera a autoridade um vestígio de tempos bárbaros. Os
senhores repudiaram a autoridade; quiseram agradar seus filhos para serem
amados: mas não serão mais amados do que nossos pais o foram e serão, talvez,
menos estimados por seus próprios filhos quando estes tiverem idade para
julgar. Pois não lhes ensinaram que tudo tem um preço e que as coisas de valor
custam caro. Jamais tiveram necessidade de merecer os prazeres que lhes foram
dados; jamais aprenderam a fazer coisas contrárias às suas vontades. Ora, não é
coisa agradável, em si mesma, por exemplo, estudar as declinações do latim ou
do alemão.
Quando
eu era pequeno, aprendi a fazer sem discutir o que me era ordenado;
prestaram-me, assim, um imenso serviço. Mas, seus filhos, como discutem tudo!
Não param nunca de discutir! Nada parece agradável para eles. Julgam tudo à
medida de seu prazer imediato. Não se surpreendam que não tenham nem
obediência, nem disciplina, nem respeito, nem senso de dever. E mais: os
senhores os cumularam a tal ponto, que não querem mais nada, e eu jamais vi
coisa mais desoladora do que jovens sem vontade. A ausência de vontade é um
estanho bem-estar.
Julgam
que sou pessimista? Mas os professores que conheço me dizem precisamente o
mesmo. Aliás, nas conversas que tive com os senhores, todos mostraram estar de
acordo com o que disse, apenas esqueceram de aplicá-lo nas próprias casas. Os
senhores não se dão conta de que se preocupam imensamente com tudo que diga
respeito à saúde, alimentação, conforto, férias ― e também com os estudos,
pois, no final, há o sacro-santo vestibular ― mas, e quanto à alma dos seus
filhos, ela os preocupa? Enquanto aguardo que o respondam perante Deus,
pergunto: Que homens os senhores darão à França?
Os
senhores sabem, contudo, que a vida não é fácil. Seus encargos profissionais
são cada vez mais pesados. Os senhores estão insensíveis para o quanto a França
diminuiu-se politicamente no mundo, o quanto ela decepciona seus amigos estrangeiros
por não trabalhar o bastante, por não saber governar sua casa, por ter perdido
suas forças em discussões estéreis. Acreditam que uma geração sem alma livrará
a França de seu mal? Pois estamos prestes a fabricar a geração mais medíocre
que a França jamais conheceu, pois nossos filhos não sabem mais impor a si
mesmos tarefas desagradáveis. Aliás, eles encontraram um maneira fácil de
escapar delas, que é a dos fracos: eles mentem. Mentem aos senhores, e os
senhores não se dão conta. Quanto a mim, gasto um tempo precioso para descobrir
suas mentiras. Jamais tive tanta dificuldade para estabelecer, em meu
internato, uma atmosfera de lealdade. Não seria assim se os senhores tivesse
comunicado o sentimento de que a regra nos ultrapassa e que a devemos respeitar.
Mas, como os srs. são franceses — os franceses são anárquicos ― os srs. dão a
eles, involuntariamente, o sentimento de que podemos burlar a regra. Para as
saídas de domingo, fixei que se deveria voltar às 17 horas — pois a esta hora
há, seja um estudo, seja um ofício na capela: mas cada domingo há alunos
atrasados. Estabeleci como regra absoluta que os alunos não devem levar
dinheiro com eles, mas os srs. lhes dão por trás de minhas costas, o que os
instala na mentira e produz consequências por vezes muito graves.
Após
nos ter confiado seus filhos, os Srs. pararam de se preocupar com sua educação.
Mas os senhores nos repassam a responsabilidade de fazer o que os Srs. mesmos
não têm a coragem de fazer. Os Srs. abdicaram. Sei bem que, dada a atmosfera
moral do mundo moderno, a tarefa dos pais, se a quiserem cumprir
escrupulosamente, é uma tarefa quase heroica. Pois bem, é preciso tomá-la como
tal, e não fugir dela. Ninguém os substituirá e, apesar de tudo, os senhores
responderão por ela. Os Srs. sabem o que se passa nas casas de educação, mesmo
religiosas? Os educadores estão completamente impotentes: ocupam-se dos
melhores e deixam a grande massa dos medíocres com sua mediocridade.
Somos
aqui uns poucos que se põem a fazer uma tarefa que, hoje, ninguém mais quer
fazer e que ninguém quer ajudar, sob nenhum ponto de vista. Portanto, não nos
dê o desgosto de achar que, aquilo que arduamente fazemos de um lado, é
frequentemente desfeito por outro. Jamais foi tão difícil retomar o trabalho
como este ano, após as férias, pois estas foram demasiado doces, prazerosas,
confortáveis. E sobretudo, quando os Srs. vierem aqui, abandonem a ideia de que
estes pobres meninos devem ser, a todo preço, confortados do mal de serem
internos com quilos de bombons, gordos desjejuns ou sei lá o que. Tento
tratá-los como homens, e peço que acreditem: não é fácil. Ser homem não
consiste em discutir e colocar tudo perpetuamente em discussão. Consiste em
assumir responsabilidades corajosas e generosas em uma ordem que nos
ultrapassa. Façam, pois, como eu. Acham que é heroico? Sejam, pois, heróis. Não
há outra coisa a fazer.
***
Fonte:
Publicado na revista on line Permanência: www.permanencia.org.br
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